“Não Olhe Para Cima” não é bem um filme sobre pandemia
Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up) é o novo furor da internet. Arrebentando na categoria de mais vistos da Netflix em vários países, a película deixa um rastro de debates por onde passa ao criticar um problema muito sério — e anterior à pandemia — o aquecimento global.
Simplificando, Não Olhe Para Cima conta a história de como dois cientistas, interpretados por Jennifer Lawrence e Leonardo DiCaprio, descobrem um cometa de dimensões sem precedentes (trocadilho proposital) em rota de colisão com a Terra. O mundo será totalmente devastado em questão de meses se algo não for feito.
Eles tentam avisar ao governo e a mídia para que a humanidade possa sanar o problema, infelizmente a agenda política e mesmo a dos meios de comunicação faz com que o evento apocalíptico seja menosprezado. Sim, dá pra acreditar que algo assim aconteceria sem precisar suspender a crença na realidade.
A obra parece descrever a pandemia com perfeição, mas digamos que é um caso clássico de carapuça servindo muito bem. Tudo é muito verossímil, assustadoramente verossímil, chegando a um nível de realismo superior ao que Borat (2006, 2020) ou Idiocracia (2006) atingiram ao cutucar feridas bem expostas do mundo ocidental.
“Todo filme de catástrofe começa com cientistas sendo ignorados.” — Frase velha do Twitter.
O roteirista e diretor Adam McKay contou em entrevista ao canal Entertainment Weekly que ele e David Sirota, jornalista com quem co-escreveu Não Olhe Para Cima, tiveram a ideia central ao ouvir relatos de cientistas.
Apesar das constantes descobertas e avisos, os grandes meios de comunicação de massa (para não mencionar os políticos) sempre amenizam ou sequer colocam em pauta os sérios problemas alertados por pesquisadores de diversas áreas.
Não olhe para trás
Divulgação/Netflix
Entre os especialistas, é quase unânime que o aquecimento global é o maior problema a ser enfrentado pela humanidade. Por isso o cerne do filme foi trabalhado como uma sátira ao negacionismo do aquecimento global. Problema descoberto na década de 60, mas que só passou a ser levado a sério em meados dos anos 90.
Além desse belo histórico, até hoje existe um grande lobby de descrédito bancado por grupos muito interessados em manter as coisas como estão. É, não é de agora que mentiras patrocinadas são disseminadas, nem tudo começou com as redes sociais e posts impulsionados.
O Covid não veio na cauda deste cometa, nem este cometa foi inventado a partir do Covid (Imagem: Divulgação/Netflix)
Claro que o negacionismo do Coronavírus cai como uma luva nos dedos putrefatos de quem financia a desinformação, mas enquanto a pandemia foi inicialmente constatada em dezembro de 2019, a produção do filme foi anunciada em novembro do mesmo ano pela Paramount, que tinha intenção de começar as filmagens em abril de 2020.
Bom, aí veio a pandemia, os planos foram alterados e o projeto acabou sendo vendido para a Netflix, que estreou essa pérola no final de dezembro. Trazendo consigo risadas, polêmicas e a certeza de que, enquanto espécie, estamos lascados.
Não olhe para os dados
Nunca foi tão fácil conseguir informação, conferir uma fonte, checar a veracidade de algo. Ainda assim, pessoas preferem confiar cegamente em virais de whatsapp que gastar 30 segundos no google descobrindo a verdade. Hoje a narrativa vale mais que a verdade.
No filme, lutam para que a informação do cometa seja espalhada, para que as pessoas saibam o que as aguarda e eventualmente eles conseguem ser escutados. Problema resolvido, certo? Errado! Entre quem sabe e acha que não vai dar nada e quem sequer acredita, vamos todos morrer no impacto.
Vivemos uma epidemia de notícias falsas dentro de uma pandemia de vírus muito verdadeiros. Uma reportagem do Fantástico mostrou que 90% da população afirma já ter recebido alguma notícia falsa e que 70% já acreditaram em pelo menos uma delas.
Talvez você tenha acreditado que o facebook ia dar dinheiro para cada compartilhamento de um post, pode ser que tenha se indignado com um projeto de lei (que nunca existiu) tentando liberar o incesto ou, se for da velha guarda, que AIDS só se transmite entre homossexuais e dependentes químicos.
O Q.I. dessa sala é mediano, porque estão lado a lado mentes brilhantes e cérebros com nanismo (Imagem: Divulgação/Netflix)
Todas as mentiras acima parecem "superadas'', em termos de grandeza, por pessoas que se recusam a olhar para cima, como diz o próprio título, mesmo o cometa já estando tão próximo que se tornou visível no céu. É preciso muito esforço para não dar nem uma espiadinha e conferir que não tem nada ali. Infelizmente, o que não falta são pessoas dispostas a fazer esse esforço por aí.
Não olhe para as mulheres
Cate Blanchett está muito bem no papel de apresentadora de televisão que tenta entregar qualquer notícia como algo leve e alegre. Dizer que Meryl Streep atuou divinamente no papel é pleonasmo. Então gostaria de chamar a atenção um pouquinho para kate Dibiasky, a candidata a PhD vivida por Jennifer Lawrence:
Kate é quem descobre e dá nome ao cometa, os outros dois cientistas homens a apoiam e a reconhecem como igual. O problema é que basicamente só eles fazem isso.
Na casa branca ela é olhada de cima para baixo pela grande líder Meryl Streep, esse desprezo só não é maior que o demonstrado por seu filho (Jonah Hill) que por pura meritocracia é o chefe de gabinete. O 01 consegue odiá-la, destratá-la e ainda achar tempo para dar em cima dela.
Você pode ser doutoranda, especialista na área, com sólida carreira, cuidar da aparência e até ter dinheiro, se for mulher, vão inventar algo para tentar te desmerecer (Imagem: Divulgação/Netflix)
No jornal impresso suas afirmações só ganham credibilidade depois que outro cientista faz a mesma afirmação e no programa de televisão então… Aí é que ela é pintada como louca desvairada em rede nacional simplesmente por se emocionar ao dizer que é um absurdo todo mundo levar a questão do cometa como se fosse algo trivial.
Não Olhe Para Cima é sobre o aquecimento global, mas também achou espaço para criticar a pós-verdade e os diversos problemas pelos quais as mulheres passam. Gaslight, mansplaing e mais um monte de outros absurdos com nomes em inglês e em português.
Não olhe para frente
O filme consegue ser muito engraçado para uma produção cuja proposta é falar do fim do mundo, mas é só lembrar que Adam McKay, o mesmo roteirista e diretor, já me fez rir da bolha imobiliária de 2008 no filme A Grande Aposta, além suas grandes sátiras, como O ncora (2004) e Os Candidatos (2012). Dizem que rir facilita as pessoas a assimilar a informação, então espero que todos tenham rido muito com Não Olhe Para Cima.
Piadas à parte, é difícil acreditar que há luz a anos-luz daqui. A grande inspiração para o papel de Meryl Streep saiu da presidência, mas o trumpismo segue forte na América. Pesquisas indicam que esse não será um ano de reeleição no Brasil, mas o cidadão de bem vai continuar preferindo mentiras confortáveis a verdades amargas.
Recentemente houve uma grande movimentação no Twitter pelo selo de verificado dado a notáveis espalhadores de fake news e a falta da opção de denunciar inverdades sobre covid na versão brasileira da plataforma. Não vou nem entrar nos reinos de Zuckerberg, afinal foi lá que tudo se intensificou para chegarmos no ponto em que estamos hoje.
Com tudo isso em mente, só resta dizer: Vem, cometa!
Vendo tantas enchentes, secas, tornados e afins pelo planeta, eu diria que já dá pra ver os efeitos do aquecimento global a olho nu… (Imagem: Divulgação/Netflix)
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.