Não se fazem mais novelas como antigamente
Alguns dizem que é saudosismo, outros que o formato não agrada às novas gerações. Fato é que a maioria das novelas atuais, salvo poucas exceções, como a atual Pantanal, exibida no horário das 21h, não tem o mesmo alcance de alguns anos atrás.
Será que é verdade? Será que o público se habituou tanto ao formato das séries, em que se pode maratonar uma temporada inteira de uma vez só, que a ideia de assistir a apenas um capítulo por dia durante 6-8 meses parece incabível? Será que os tempos mudaram tanto assim e os folhetins estão fadados a morrer? O sucesso estrondoso do remake, contrário às expectativas, pode dar pistas para solucionar o mistério.
Do noveleiro fiel ao que liga a tv apenas para assistir algo durante o jantar, muita gente se pergunta sobre os rumos da teledramaturgia. Essas não são perguntas fáceis de se responder, e para cada uma delas não há uma só resposta, mas várias. Não é possível afirmar que um ou outro motivo isolado causou a queda das novelas no gosto popular.
Pelo contrário, esta queda é causada por um cunjunto de fatores. E olhar só para um deles significaria tampar o sol com a peneira e, ao encontrar uma solução, ela apenas enxugaria o gelo.
Alguns já anunciavam que o formato estava obsoleto quando Pantanal estreou, depois de ser adiada mais de duas vezes. Menina dos olhos da Globo, a emissora apostou no remake para salvar o horário, que andava em baixa desde o fiasco de "Um lugar ao Sol", que prometeu, prometeu... E nunca entregou.
Antes mesmo da estreia, Pantanal dividia opiniões. Um lado estava ansioso para relembrar os personagens que gostavam tanto, e já dizia que seria uma das melhores novelas e o outro, já decretava o fracasso, tanto por ser um remake quanto pelo declínio das novelas nos últimos anos.
O fato é que tinha tempo que um folhetim não fazia sucesso de verdade, a ponto de criar bordões, eternizar personagens, influenciar costumes; fazer as pessoas desmarcarem compromissos se fossem no horário do capítulo; causar um impacto real, como sempre foi uma marca do Brasil, e tinha acontecido com Avenida Brasil, Caminho das Índias, O Clone e tantas outras.
Uma ou outra até ia bem de audiência, mas assim que saía do ar, era esquecida. Se você perguntar a alguém qual novela antecedeu Pantanal, alguns segundos passarão antes que digam "A novela do Cauã Reymond".
Agora pergunte a alguém para citar alguns personagens de A força do Querer, Avenida Brasil... E você escutará não só seus nomes, como a relação com os outros personagens, seus conflitos na trama, bordões e desfecho.
Os exemplos mais recentes de novela que possuíam esse poder foram as reexibições de O Clone e O Cravo e a Rosa. 20 anos após a estreia de ambas e muitas, muitas reprises depois, as pessoas ainda paravam tudo para ver as trapalhadas do Petruccio na padaria, ainda ouviam os delírios de Bianca enquanto trabalhavam de Uber, mesmo sabendo o enredo todo de cor.
O que contradiz totalmente a teoria de que brasileiro não gosta mais de novela. E não pode ser só saudosismo, já que as novas gerações também acompanharam as reprises.
Mesmo com algumas narrativas que não envelheceram tão bem, e correndo risco de sofrerem cancelamento pelo público, tanto a obra de Gloria Perez quanto a de Walcyr Carrasco continuaram tão queridas quanto no início dos anos 2000.
Logo, definitivamente o problema não está no formato de exibição dos folhetins, mas talvez no formato de execução. É inegável que o jeito de consumir histórias audiovisuais mudou com a popularização das séries. Mas só tentar "seriedificar" as novelas não é a solução, como provam Deus Salve o Rei e Verdades Secretas II, que tentaram replicar aspectos narrativos (com ambientação medieval e europeia, a novela se inspirou totalmente no fenômeno de Game Of Thrones) e de distribuição (o Globoplay liberava combos de episódios de uma vez só, como se fossem 'temporadas') das séries, e fracassaram.
A graça de assistir a uma novela é ela ter cara de novela. Se alguém quiser assistir a uma série, simplesmente vai assistir uma série.
Cada formato tem suas características, e nem tudo que funciona muito bem em um, funciona também no outro. Tentar só modificar elementos como se fossem receita de bolo não é a chave para as novelas terem o mesmo apreço de antes e é isso que os autores, e toda a equipe de produção, precisa entender.
Evidentemente, alguns formatos saturaram de vez, como aconteceu com a clássica Malhação, cancelada sem data para voltar. Quando a fórmula não deu mais certo, a produção até tentou mudar uma coisinha aqui, outra ali, e algumas edições se sobressaíram (como a aclamada Viva a Diferença), mas no fim eram os mesmos personagens com as mesmas tramas; o roteiro engessado depois de 20 anos sendo replicado sem dó (como a Vidas Brasileiras, cópia barata e tristemente executada de Viva a Diferença), até que.... Deu no que deu.
Nem os adolescentes, que no geral são um público menos exigente em relação a roteiro, quando se afeiçoam muito aos personagens aguentaram, mesmo com a escassez de programação para essa faixa etária.
É esse engessamento que age como o último prego no caixão das novelas. Quando a tv faz a chamada de uma nova, é quase inevitável a sensação de dejá vù, porque já vimos mesmo a mesma trama antes, várias e várias vezes.
Malhação é só o exemplo mais óbvio. Mas, como ela, existem diversas outras em que você nem precisa ser um expert em roteiro para adivinhar exatamente como cada coisa vai se desenrolar.
A caracterização dos personagens da maioria das tramas também é um tanto ultrapassada. Nós não simpatizamos mais com as mocinhas e mocinhos que são, como a internet diria, "cristaizinhos"; nos irrita o jeito como sempre conseguem tudo sem esforço, ou aguentam a pior das armações sem dar um pio.
Anteriormente, nos afeiçoávamos aos vilões quando os mocinhos eram muito moscas mortas, mas estes agora raramente são complexos e carismáticos, sendo muitas vezes caricatos ou cópias descaradas de vilões queridos.
Cada vez mais, estamos preferindo personagens complexos, às vezes moralmente dúbios, já que nos vemos muito mais neles. Personagens que não deem mole pros vilões. Podemos ver um cenário parecido no mundo dos quadrinhos, em que heróis maniqueístas como Capitão América e a Capitã Marvel foram perdendo lugar para outros heróis e até mesmo anti-heróis, porque o público também foi entendendo que nem sempre dava para ser tudo preto no branco.
E passamos a querer ver essas dificuldades, esses dilemas morais, porque o público dos quadrinhos, como o público das telenovelas, também aprendia e refletia com o entretenimento, e passamos a buscar na ficção as respostas para os nossos próprios dilemas.
Não precisamos concordar com as atitudes de um personagem para gostar dele, e é nisso em que as séries têm seu trunfo.
Por isso, se torna óbvia a necessidade de uma renovação no formato tanto das tramas quanto dos personagens, como aconteceu com os quadrinhos.
Um passo promissor nesse caminho seria investir mais em personagens como a Ritinha, de A força do Querer: totalmente equivocada, agente do caos; vivia aprontando com seus dois interesses amorosos e fazia os telespectadores quererem arrancar os cabelos, mas não tinha quem não gostasse.
Assim como repensar o papel dos vilões. Nem toda novela precisa de um para gerar conflito e ser interessante. Há uma diferença entre antagonista e vilão. Antagonistas são essenciais para existir conflito, já vilões são apenas um tipo de antagonista. Mas qualquer coisa pode ser um, desde que represente um obstáculo para o protagonista alcançar o que deseja.
E isso longe de deixar as tramas menos interessantes, as deixariam mais verossímeis. Afinal, quantas pessoas já tentaram envenenar seu chá ou roubaram suas roupas no vestiário?
Por outro lado, quantas vezes você já se sabotou e deixou de aproveitar oportunidades por medo de falhar? Ou não conseguiu ficar com a pessoa que gostava porque seus problemas de comunicação estragaram tudo?
Somos nossos maiores antagonistas. Não somos feitos de vilões e mocinhos. Todos podemos ser vilões na vida dos outros, mesmo que sejamos os mocinhos da nossa. Um grande exemplo de trama de sucesso em que não existia vilão e mesmo assim era recheada de conflitos é novamente "A Força do Querer". Nela, Ritinha é a antagonista de Jeiza, que por sua vez é antagonista de Bibi.
Embora Bibi seja uma criminosa e Ritinha só pense nela muitas vezes, nenhuma das duas é vilã. Muito menos a Jeiza. No entanto, seus caminhos se cruzam e uma representa um obstáculo na vida da outra. Na maior parte do tempo, sem truques ou falcatruas, a vida apenas segue seu curso. Tem coisa mais real?
Também é preciso jogar fora as receitinhas de bolo de enredos que têm dado certo há 40 anos. Porque nesse caso sim, as gerações mudam. O que conversava com o público de "Que Rei Sou Eu?" não necessariamente vai conversar com o público de hoje. Mas não porque a audiência não é capaz de entender uma boa obra, como alguns autores já declararam em redes sociais, mas sim porque o autor não se importou em estabelecer uma ponte entre narrativa e telespectador. Afinal, é esse o objetivo das histórias: gerar uma conversa.
Esse é um aspecto que Pantanal executa com maestria: longe se apoiar apenas na nostalgia e replicar a mesma história, endereçada exclusivamente para o público da primeira versão, o remake mantém a essência e os elementos que matam a saudade, mas trazem uma história, acima de tudo, contemporânea, que realiza a façanha mais impressionante: conversar tanto com as gerações mais novas, quanto com as mais velhas.
O Jovi é um jovem rebelde e questionador, mas o que significava rebeldia nos anos 90 não é o que significa hoje; mesmo assim, todos concordam que ele mantém sua essência, ao mesmo tempo em que é um retrato fiel da juventude.
O filho do Zé Leôncio dos anos 90 jamais brigaria com o pai pelo movimento vegano, enquanto o atual sim. Mas isso longe de parecer forçado ou contraditório ao personagem, é um contraponto extremamente divertido de se ver, que além de tudo adiciona mais uma camada na relação de pai e filho e no conflito de gerações, que é lindo de acompanhar.
A parte mais incrível do enredo é o conflito geracional entre Jovi e Zé Leôncio. Longe de oferecer respostas prontas e rasas; Pantanal nunca tenta apontar um certo e um errado na história; nem o pai é um pobre coitado nem o filho é um ingrato desnaturado.
Ambos são humanos, falhos, e tentam se impor pelo que acreditam ao mesmo tempo em que querem achar algum ponto de convergência, que possa conectar um ao outro, porque é uma dor visceral quando sentem que estão há um abismo de distância um do outro. Todo diálogo dos dois é sensível, escancarado e ao mesmo tempo sutil; tão real a ponto de deixar seus olhos marejados e fazer você se sentir constrangido de estar vendo aquela vulnerabilidade toda ao lado dos seus pais; muito mais até do que quando, do nada, a Muda ou a Juma aparecem com os peitos de fora nadando no rio.
E são visíveis os resultados. O remake ganhou o título de "novela para homem", devido ao enorme número de telespectadores do sexo masculino, que até mesmo se juntam no bar para assistir juntos. Além disso, tem o próprio fandom, chamado de "pantaneiros", que só ganha mais adeptos a cada nova fase do enredo.
As pessoas fofocam sobre no trabalho e na internet, nas filas; todo mundo estava com saudade disso. A novela cumpriu o papel que há muito tempo não se via acontecer: unir o Brasil, em diferentes regiões e faixas etárias e levar todas essas pessoas, até as que nem assistiam novela, para a frente da televisão.
Pantanal faz tudo o que podemos desejar de um folhetim: entretém, faz refletir, acolhe, provoca, gera memes e bordões; além de mostrar lugares incríveis do coração do Brasil e dar visibilidade à narrativas e culturas fora do eixo Rio-São Paulo, onde a maioria das novelas se passam.
E esse trabalho incrível só foi possível porque arte, de qualquer tipo, é comunicação. Mas antes de poder falar, a gente precisa ouvir. E foi isso que Bruno Luperi fez. Ele não se deixou levar pelo que ele achava que os jovens eram e como pensavam, ou por como os jovens eram quando ele também era jovem. Ele foi ouvir a geração de hoje; saber os conflitos, as crenças, os dilemas.
É necessário que os autores estejam dispostos a se reinventar, que estejam dispostos a descer do pedestal em que alguns insistem em ficar; que não subestimem a inteligência da audiência. É preciso exterminar essa síndrome do gênio incompreendido que habita em alguns deles.
Autores não escrevem para si, caso contrário não enviariam seus roteiros para emissoras. Eles escrevem para o mundo, escrevem pensando que alguém vai assistir. Então é dever deles fazer as tramas conversarem com a audiência, sem a qual seus trabalhos não valeriam de nada. A arte só se realiza em sua totalidade quando percebida; absorvida. Então se o público não se conectou com a sua história, não é culpa do público.
Então se não se fazem mais novelas como antigamente, graças a Deus por isso. Porque não somos mais o povo de antigamente.
Porque sim, os tempos mudam. E é preciso se adaptar a eles, como todos precisaram se adaptar aos computadores quando as máquinas de escrever se tornaram obsoletas. (E quem não se adaptou, logo ficou pra trás. Porque o mundo não para pra ninguém.)
Mas as mesmas petulância e ousadia que cativaram e inspiraram os leitores de A Fera Indomada, de Shakespeare, são as mesmas que, quase 500 anos depois, cativaram e inspiraram os telespectadores de O Cravo e a Rosa.
Sentimentos são imortais, e portanto, fontes inesgotáveis de material para histórias.
As novelas não morreram. Porém é imprescindível que elas se renovem para continuar relevantes. O remake de Pantanal esta aí para mostrar isso. Contra todas as expectativas, a novela é sucesso de audiência e de carinho pelo público, e está deixando sua marca no país. Ainda existem muitas histórias para serem contadas, só precisamos de autores dispostos a contá-las.
Bruno Luperi fez com um remake uma narrativa mais atual que muitas novelas inéditas, dando-nos, assim, boas pistas do que fazer para alcançar o mesmo feito e manter a relevância dos folhetins.
Mas mesmo que um dia este formato realmente fique obsoleto, já que tudo tem um fim; outro formato surgirá. Porque as coisas só acabam para que outras possam começar. Nesse caso, guardaremos as telenovelas com saudade, mas não com saudosismo, porque no fim, são apenas jeitos diferentes de fazer a mesma coisa.
Tramas sobrevivem ao tempo, já que antes da escrita já passávamos conhecimentos gravados na memória através de contos de geração em geração; sobrevivem a incêndios de bibliotecas, museus, perseguições; tramas sobrevivem a tudo. Somos carne, espírito e histórias; elas tem a capacidade de nos manter vivos, quando nada mais pode.
Fazemos isso desde o início da nossa espécie: contar histórias. E isso nunca deixaremos de fazer.
Este artigo foi escrito por Keith Ives e publicado originalmente em Prensa.li.