A narrativa feminina no futebol americano: uma história de luta e empoderamento
Ao longo da história as mulheres precisaram reivindicar seu espaço na sociedade. Precisaram provar que 'sexo frágil' não consta na definição feminina do dicionário. Quando o assunto são esportes, a jornada percorrida foi longa.
Antes de conhecer a narrativa de algumas mulheres, veja o que você vai encontrar aqui:
Hoje, se muitas garotas têm maior liberdade dentre as práticas esportivas, é por que outras abriram esse caminho. Um exemplo disso é Kathrine Switzer, a primeira mulher a correr a Maratona de Boston, em 1967.
Na época apenas os homens podiam integrar quaisquer provas de rua no país e por isso ao longo de todo o percurso a corredora passou por situações de agressão por parte de um dos diretores do evento e outros competidores homens.
Antes do ato de Switzer contra o machismo e discriminação de gênero, Maratona de Boston era uma competição exclusivamente masculina. A atleta apenas conseguiu se inscrever de forma discreta, pois usou suas iniciais como nome: K. V. Switzer.
Claro que ainda temos um longo processo, pois gostando ou não, há quem pense que as quadras não não pertencem à mulher.
Os esportes em suas diversas modalidades nunca foi considerado "coisa de mulher", tanto que após a oficialização da Olimpíada Moderna, as mulheres foram instruídas a ficar "no lugar delas".
Kathrine Switzer, sendo agredida por um dos diretores da Maratona de Boston em 1967 | Foto: Reprodução
No campo mulher não pisa
Outro exemplo de discriminação ocorreu aqui no Brasil dirante a ditadura de Getúlio Vargas. Em 1941 é anunciado o Decreto-Lei 3.199 do Conselho Nacional de Desportos (CND) que coibia a prática esportiva para mulheres. Esportes como lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, rugby, halterofilismo e beisebol foram proibidos.
A justificativa era de que o esporte era perigoso demais para as mulheres e "incompatível com as condições de sua natureza. Somente em 1979 a lei foi revogada.
Crescimento de futebol americano no Brasil
Estreia do Portuguesa no campeonato brasileiro feminino 2019 | Crédito: Larissa Pereira e Thaina Montheiro
Com origens no rugby e futebol , o esporte nasceu em 1867, após uma sequência de três jogos entre Havard e Yale que combinava as regras dos dois esportes. Nas décadas seguintes, novas mudanças foram implementadas e algumas regras tiveram de ser adaptadas.
Hoje a popularidade do esporte cresce a cada dia. De acordo com o jornal britânico The Indepedent, em 2015, o Brasil era o terceiro país do mundo com o maior número de fãs do esporte, totalizando cerca de 19,7 milhões de pessoas, atrás apenas dos Estados Unidos (115 milhões) e do México (23,3 milhões). No ano anterior, a audiência do futebol americano no Brasil tinha crescido 132%.
É inegável que cada vez mais o Super Bowl ganha admiradores no país. Em 2019, a audiência da final da NFL no Brasil foi 67% maior que a de 2015, segundo o Ibope. O tempo que o telespectador dedicou à transmissão do jogo também aumentou 34% entre as duas finais (2015 e 2019).
Em 2020, a audiência bateu recordes em outras plataformas, fora os canais regulares, de acordo com a ESPN detentora exclusiva das transmissões do campeonato regular da liga americana, incluindo o grande evento.O site ESPN.com.br viu o número de visitantes únicos crescer 61% no conteúdo.
No Brasil, tivemos a primeira equipe de futebol americano apenas em 1991, com o time Joinville Blackhaws, porém hoje é conhecido por Joinville Panzers. E quase 10 anos depois, em 2000, ocorre o primeiro torneio em solo nacional, o Carioca Bowl, disputado na areia.
Com o crescimento do futebol americano no país, vários clubes de futebol perceberam nesse esporte uma oportunidade de trazer novos torcedores. Algumas das principais equipes do Brasil são:
Corinthians Steamrollers-SP
Palmeiras Locomotives-SP
Vasco da Gama Patriotas-RJ
Recife Pirates-PE
Flamengo F.A-RJ
Cuiabá Arsenal-MT
Coritiba Crocodilles-PR
Galo F.A-MG
De uma forma muito inusitada, para não dizer acidental, o Corinthians Steamrollers-SP foi justamente o motivo que levou Cristiane Kajiwara a se apaixonar pelo esporte. No começo do ano (2021) ela ganhou a eleição para presidente da Confederação Brasileira de Futebol Americano (CBFA), sendo a primeira mulher a ocupar o cargo.
"Sou corinthiana roxa, acompanho tudo o que o time faz e na época de 2011-2012, o Twitter estava muito forte e eu seguia vários perfis. Eu fui conhecer o perfil @CorinthiansFA. Na época achei que era um perfil para fãs, mas depois fui saber que o FA era de Futebol Americano", explica Cristiane. A partir de então ela passou a acompanhar mais desse mundo com suas ligas e campeonatos.
Cristiane nunca chegou a jogar futebol americano, tendo se posicionado sempre como uma admiradora do esporte e ocupando cargos de gestão. Para ela um dos maiores desafios de sua gestão será a relação da organização com a comunidade. "Eu acredito que a imagem da confederação ficou bastante arranhada com as últimas renúncias e saídas. A gente vai ter que então conquistar novamente a confiança da comunidade, não só mostrar para quem está aqui dentro, mas para fora, mostrando que somos uma confederação séria".
O caso que Cristiane se refere são as inconstâncias no cargo de presidente da Confederação Brasileira de Futebol Americano. Por três vezes seguidas os presidentes que ocuparam o cargo renunciaram e não concluindo o tempo total de mandato. Depois de Guto Sousa renunciar em 2017, e seu vice, Rogério Pimentel, deixar o cargo (junto a toda diretoria) no início de 2019, ano passado foi a vez da renúncia de Ítalo Mingoni.
Primeiro time de futebol americano feminino
Imagem do time America Big Riders | Crédito: Tatiana Sabino
Apesar do futebol americano ser praticado no país desde 1991, o primeiro time feminino levou alguns anos para ser criado. Foi em uma praça próxima a sua escola, em 2003, que a história de Tatiana Sabino cruzou com o futebol americano. “Passou um menino com a bola de futebol americano, eu gostei, perguntei se ele jogava, se havia times aqui no Brasil. Foi a partir daí que conheci o Carioca Bowl e a equipe de Saquarema.”
Na época, como não havia times femininos,Tatiana acabava jogando nos masculinos. Mas após o episódio em que foi vetada pela AFAB de jogar o Carioca Bowl pelo Saquarema Tsunamis, ela decidiu que já estava na hora de investir no FA Feminino. "Eu decidi montar uma equipe feminina para continuar jogando, acreditando também que a partir do momento de surgisse a primeira, outras seriam criadas na sequência.", conta Tatiana.
No dia 3 de julho de 2004, foi fundado o Saquarema Big Riders, time que posteriormente foi o primeiro campeão carioca em 2005 e tricampeão do Saquarema Bowl de 2008 a 2010.
O time passou por algumas mudanças bem significativas ao longo dos anos. A primeira foi migrar para o futebol americano todo equipado e sua parceria em 2012 com o Club de Regatas Vasco da Gama, passando a ser chamado de Vasco Big Riders. Depois de cinco anos, a equipe volta a se chamar Big Riders e somente voltou a firmar uma parceria em 2019 com America Football Club, passando a utilizar as cores do tradicional clube carioca e o nome America Big Riders.
A presidente do time e ainda jogadora, Tatiana Sabino acredita que as meninas que já tem experiência no jogo estão atingindo um patamar evolutivo de qualidade técnica muito boa. “No início o futebol americano feminino tinha visivelmente inferior em relação ao masculino, que já jogava a muito mais tempo”.
Ela ainda explica que atualmente as mulheres já conseguem se equiparar aos homens, sendo os jogos mais disputados, mais inteligentes. Entretanto, Tatiana ainda sente que em relação ao fomento dessa prática entre as mulheres. “Sinto que demos uma estagnada, e não estamos aumentando o número de equipes”. Para a jogadora, há sim uma dificuldade em expandir o esporte.
As pioneiras na história na NFL
Katie Sowers
A desbravadora Katie Sowers, que foi contratada pelo San Francisco 49ers em 2017, se tornou a segunda mulher a trabalhar como assistente técnica em tempo integral na NFL (Offensive Assistant Coach). Além de abrir as portas para outras mulheres no esporte, Katie se declarou como a primeira técnica LGBTQ+ da história da liga.
Jen Welter
Em julho de 2015, Jen Welter se tornou a primeira técnica de um time masculino na história da NFL, o Arizona Cardinals. Ela serviu como estagiária da pré-temporada, cujo foco principal era nos linebackers internos.
Sarah Thomas
Em 2015 ela se tornou a primeira mulher a ser contratada como árbitra na NFL, exercendo a função de juíza de linha. Quatro anos depois ela foi a primeira árbitra a trabalhar em um jogo de playoffs, na partida entre o New England Patriots e o Los Angeles Chargers. No dia 7 de fevereiro de 2021, Sarah fez novamente história: aos 47 anos vira primeira mulher a trabalhar no Super Bowl, atuando como juíza.
Brasileiras que conquistaram os EUA
Ter a chance de jogar em uma liga profissional é o sonho de muitos atletas do futebol americano. É preciso tempo e dedicação, paciência para desenvolver todas as habilidades e técnicas e em 2020 a Gabriela Evangelista se tornou uma das poucas brasileiras a conquistar esse feito.
Ela não apenas chegou a jogar pela Seleção Brasileira de Futebol Americano, como agora é a mais nova integrante do San Diego Tridents da Women’s Football League Association (WFLA).
Gabriela Evangelista com outras jogadoras do Brasil Onças, a Seleção Brasileira de Futebol Americano.
A trajetória da brasiliense começou logo na faculdade, quando praticava Rugby, sendo a única mulher em um time masculino. Para Gabriela esse esporte a ajudou a se tornar mais disciplinada, focada, trabalhar mais duro. “Me ensinou a liderar (fui capitã), a ser exemplo dentro e fora de campo, a trabalhar em equipe que é o mais importante, e nunca, jamais desistir do que queremos, seja em uma jogada dentro de campeonato ou algo na vida”.
Brasília Pilots foi onde tudo começou
Quando não foi possível mais praticar Rugby, outra oportunidade apareceu. Ao ver sua rede social, Head Coach do Brasilia Pilots a convidou para fazer um tryout do time em 2017. “Iniciei meu primeiro ano de campeonato jogando como Linebacker, no ano seguinte com os ajustes do time, meu HEAD Coach na época, optou por alterar a minha posição e me colocar como defensive line, por eu ser alta, rápida e forte. Entretanto, no primeiro Training camp do ano, rompi o meu ligamento cruzado anterior (LCA)”.
A lesão foi um dos maiores desafios enfrentados como atleta. Gabriela passou por uma operação e ficou um ano sem jogar, voltando ao campo apenas com permissão do médico em 2019. O retorno foi em uma posição um pouco diferente, defensive tackle.
São os esportes que testam nossos limites desde o começo, esportes que vencem quem não desacredita e vai até o final, não importa a situação — Gabriela Evangelista
O Brasília pilots foi a primeira casa da jogadora. Lá ela teve tive conquistas maravilhosas nesse time e o prazer de ser convocada para a Seleção Brasileira, além de ser eleita como capitã. Optar por treinar para conseguir uma vaga na seleção significou um passo dado em direção ao seu sonho, mas ao mesmo tempo Gabriela precisou de treinos mais específicos, abandonando até o crossfit.
A brasiliense conta que o processo seletivo para conseguir entrar para o time de San Diego foi bem difícil. “Quando vi que a liga WFLA havia sido criada, fui atrás dos times sozinha. Eu não tive ajuda de ninguém, vi aquilo como a oportunidade da minha vida e faria de tudo pra conseguir entrar”.
No dia da entrevista com o San Diego Tridents, seu atual time, Gabriela descobriu que era a única brasileira que estava disputando com mais 60 atletas, e muitas delas jogadoras eram excelentes da LFL. A dedicação de anos teve sua resposta após uma semana: Gabriela seria a primeira brasileira a se juntar à primeira liga profissional feminina dos EUA.
“As pessoas se surpreendem quando eu falo que jogo futebol americano, por ser um esporte força, impacto, agressividade, e fazem sempre a pergunta: nossa, mas como vocês aguentam?”, afirma Gabriela.
Para ela, as mulheres estão evoluindo nesse mundo, mas temos muito caminho a percorrer ainda no sentido de conseguirmos mais visibilidade na mídia, patrocinadores, até mesmo o estilo de jogo, velocidade de jogo, que nos EUA é bem diferente daqui.
“Lá o esporte é super valorizado, você consegue bolsa em faculdade, e até mesmo fazer do esporte uma carreira, entrar para as melhores ligas por conta do valor que eles dão", conta Gabriela. Para ela isso vem do fato que desde crianças eles (americanos) já têm essa cultura e contato com o futebol americano, já no Brasil pode ser visto ainda como diversão e lazer.
Do Portuguesa para Phoenix Red Tails
Outra brasileira que faz parte do seleto grupo de mulheres convocado para uma liga profissional americana é Larissa Pereira. Apaixonada por esportes desde os 12 anos, Larissa passou pelo atletismo e boxe, sempre com foco nas competições.
Larissa Pereira enquanto jogadora do Portuguesa | Crédito: Larissa Pereira
Em 2016, o Caraguá Ghost Ship precisava de meninas para participar de um amistoso. A narrativa de Larissa no futebol americano começou lá.
“Eu não sabia nada do esporte, nem mesmo tinha assistido um jogo. Como eu já tinha um perfil atlético eu decidi ajudar, depois do primeiro jogo já me apaixonei, mas nos treinos foi difícil de entender”, conta a jogadora. Infelizmente o time onde ingressou no futebol americano não possui mais time feminino, apenas masculino.
Larissa conta que a seleção brasileira sempre foi um sonho desde que mergulhou no futebol americano, mas ainda faltava uma seleção brasileira feminina. Só restava treinar e jogar muito até que o momento chegasse. “Fiz dietas, treinos específicos, sonhando com isso mesmo sem saber quando iria acontecer e em 2019, na nossa participação no campeonato brasileiro consegui fazer bons jogos, montei meu highlights, vídeo de melhores momentos e é através de vídeos assim que é fizeram a seleção das atletas para o training camp da seleção brasileira”.
A história de Larissa transcendeu as terras brasileiras e como Gabriela Evangelista foi convidada para jogar em uma liga de elite do FA feminino nos EUA. Larissa é a mais nova linebacker do Phoenix Red Tails.
Para a linebacker a melhor coisa que o esporte lhe trouxe foram as pessoas. Atualmente a maior parte do seu ciclo de amizades são pessoas que ela conheceu através do esporte, inclusive sua namorada Nicole. "Esse esporte me transformou. Estou aprendendo a liderar, a trabalhar em equipe e isso são coisas que não tem preço".
Este artigo foi escrito por Luana Brigo e publicado originalmente em Prensa.li.