Nausicaä do Vale do Vento - um filme nota AÄ+
A fonte
Nausicaä do Vale do Vento começou como um mangá escrito por Miyazaki e acabou se tornando uma animação antes mesmo da fundação do estúdio Ghibli, que posteriormente comprou os direitos da obra. Um caso raro onde o criador do mangá foi o responsável por sua adaptação, algo próximo ocorreu, por exemplo, com Katsuhiro Otomo e sua icônica obra, Akira.
O mangá chegou, inclusive, a ser parcialmente publicado no Brasil pela extinta e ressuscitada Conrad. No ano passado a editora JBC prometeu relançar a obra, mas chega de falar do mangá. É hora de te convencer a assistir o longa-metragem de Nausicaä expondo algumas de suas muitas qualidades.
O mar de podridão
O plot é sobre como uma jovem tenta impedir e recuperar o avanço de florestas tóxicas com insetos gigantes que se alastra destruindo vilas e aldeões pelo mundo e como outros humanos acabam atrapalhando seu plano com conflitos mesquinhos.
Pra começo de conversa, quem quer viver, usa máscara ao sair de casa, só nisso já me ganhou uns pontos de identificação. No caso não são PFF2, são máscaras criadas para filtrar o ar envenenado por fungos que tomaram conta da Terra nos últimos mil anos; depois de mais uma guerra devastadora e desnecessária dos humanos.
Aqui entra o primeiro item da inspiração de Miyazaki: a baía de Minamata, que não sofreu uma bomba atômica devastadora como Nagasaki. Em vez disso, os habitantes da ilha provaram ser possível causar grandes danos ao meio ambiente e à população sem intervenção estrangeira.
Em um misto de industrialização desenfreada e falta de planejamento, os habitantes da pequena cidade de Minamata adoeceram por envenenamento devido à massiva quantidade de água com resíduos químicos e mercúrio sem qualquer tipo de tratamento despejados no mar durante as décadas de 50 e 60. Essa é a base para o “mar tóxico” que se espalha pelo planeta e ameaça o Vale do Vento e toda a espécie humana.
Passaram cerca de 40 anos tratando a água da baía antes de ser seguro comer peixes pescados lá. Mas Nausicaä do Vale do Vento já estava pronto e sua crítica certeira espalhada pelo mundo muito antes de Minamata ser considerada descontaminada. É uma obra com posicionamento ambientalista já em 1984!
A ninfa inspiradora
Saindo do plano de fundo da história, a própria protagonista é um ponto que merece ser detalhado. Fusão de duas figuras folclóricas, Nausicaä tem seu estranho nome e parte da personalidade retirados da Odisséia de Homero.
Isso é meio grego pra mim (Divulgação - Estúdio Ghibli)
Na Odisséia, Ulisses naufraga após escapar da ilha de Calipso. Enquanto suas criadas se assustam com a figura do forasteiro nu, a princesa Nausicaä vai em seu auxílio sem exitar. É dito na obra que sua figura lembra a deusa Ártemis.
E Ártemis a deusa do que? Exatamente disso que você pensou, dos animais selvagens (entre outras coisas que não vêm ao caso). Essa destemida princesa que representa uma deusa, que ajuda até quem não conhece, humanos ou animais, é a base para a heroína do longa-metragem.
Complementar a isso, existe um antigo conto nipônico, “A princesa que amava insetos”. Nausicaä ama e cuida de todos os animais desde a infância. Não interessa se é um insetinho, um “rei dos insetos” maior que um ônibus de dois andares ou seu “raposa-esquilo-pokémon” — que entra na história como ferramenta narrativa para demonstrar sua bondade e sua forma de resolver problemas pacificamente.
Sobre a história, eu prefiro falar menos e deixar que você descubra suas maravilhas. É a Nausicaä tentando salvar o mundo em sua asa delta invertida e os humanos atrapalhando com suas pequenezas ao som de uma trilha sonora oitentista que faz pensar que abriram uma boate na floresta. Mas vamos ao que importa:
Uma obra precursora
Se eu tivesse que descrever Nausicaä do Vale do Vento em uma palavra, seria precursor.
A obra aborda desde 1982 (com o mangá) uma gama de temas que estão na moda hoje. Trata do meio ambiente e da destruição causada pelo homem; Mostra que conflitos armados não são a solução e de quebra tem uma protagonista com mais girl power que muito filme recente estrelado por mulheres.
Nausicaä é uma princesa mão na massa, da primeira à última cena do filme ela está correndo atrás de soluções. Se ela para ou se desvia do seu objetivo, é pra ajudar outro animal ou humano.
A principal antagonista é uma mulher forte, provavelmente derrotaria a protagonista em uma luta direta, só que esse filme não é sobre indivíduos, é sobre grupos, sobre coletividade. Não importa o resultado de um combate, o que conta é qual povo irá se sobressair ou mesmo se os humanos sobreviverão enquanto espécie.
Poderia ser a história do filme Como Treinar seu Dragão, das cenas de voo e longas botas peludas ao personagem principal se arriscando para provar aos humanos que lutar contra e matar os animais é algo ruim; Soluço e Nausicaä seriam bons amigos. Não é um caso de plágio, apenas um exemplo de como Hayao Miyazaki fez muita coisa antes de todo mundo.
Não é um dragão, mas também voa lindamente. (Divulgação - Estúdio Ghibli)
Falando um pouco de Miyazaki, eu vejo em sua obra até mesmo uma semelhança na forma de trabalhar com Woody Allen. Sabe aquela conversa de que todo filme do Woody Allen é o mesmo filme? Então…
Checklist de preferências do Miyazaki:
Protagonismo feminino ✓
Embate entre personagens jovens e adultos ✓
Cenas aéreas ou ao menos de penhascos ✓
Antibelicismo e antiguerra ✓
Comida tão bem desenhada que faz salivar ✓
Natureza respeitada, reverenciada e preservada ✓
Penteados que se mexem para expressar surpresa ✓
Sem maniqueísmos de bem contra o mal ✓
Obras acessíveis a crianças, mas sem infantilização ✓
Elementos realistas e fantasiosos combinados ✓
Todo filme acaba sendo o mesmo filme guiado pelo máximo de itens possíveis dessa lista, ainda assim cada obra é única, diferente e merece ser apreciada, tal como a filmografia de Allen. A obsessão e a repetição temática de ambos resulta em um brilho de algo lapidado à exaustão.
Até o mundo dos jogos me parece ter sido influenciado por Nausicaä do Vale do Vento. Claro que pode ser apenas o foco em insetos, mas quem já jogou o premiado Hollow Knight pode imaginar e supor que seus criadores assistiram ao filme algumas vezes, especialmente na integração de fungos com insetos e no “quase easter egg” da carcaça de um Ohmu (Rei dos Insetos) escondida nas entranhas do jogo.
Além dos Ermos Fúngicos, temos esse monstro que poderia ser tranquilamente um Ohmu. (Divulgação - Team Cherry)
A questão das calças
Fora a trilha sonora oitentista na floresta. A única coisa que faz a animação não ser um filme AÄA+ é a péssima decisão de colocar a calça de alguns personagens com a mesma cor da pele deles. Ou a decisão foi tomada com muita inocência ou alguém quis fazer um aceno ao pessoal que fica muito agradado maldando animações que não precisavam ser erotizadas.
Teoricamente isso foi corrigido anos depois no blu-ray, mas parece outra coisa, parece. (Divulgação - Estúdio Ghibli)
Esse mal, felizmente, passou bem longe do Estúdio Ghibli após sua formação. Hoje dá pra dizer esse tipo de erotismo até que está entrando em decadência, apesar de ainda aflingir muitas animações japonesas.
Resumindo tudo, veja Nausicaä do Vale do Vento. Assista novamente se faz tempo que viu e programe sessões futuras esporádicas para ter essa obra sempre no coração, porque dá pra dizer que aqui nasceu o Estúdio Ghibli e aqui surgiu muita coisa que tem valor até hoje.
Fontes sobre o envenenamento em Minamata:
https://www.reuters.com/article/us-japan-minamata-victims-idUSKCN1BV326
https://www.verywellhealth.com/minamata-disease-2860856
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.