Netflix: a tragédia dos erros
A mesma agora está “se virando nos trinta” com o crescimento constante do seu próprio churn rate. Nunca tantos cancelaram ou disseram que iriam cancelar suas assinaturas. Mas o que está acontecendo com a gigante do streaming, e principalmente, quais as perspectivas?
É certo que a empresa de Reed Hastings investiu – e investe – milhões para se manter relevante, seja como distribuidora, ou produtora de conteúdo. As produções exclusivas se firmaram e afirmaram depois dos sucessos de House of Cards, Orange is The New Black, Stranger Things e La Casa de Papel.
Dividir para conquistar
Se há pouco tempo a Netflix nadava de braçada nesse riachão do streaming, viu repentinamente as águas ficarem turbulentas. Outros gigantes do entretenimento cansaram de ver a empresa fazer fortuna “sozinha”, utilizando-se de seus conteúdos.
Muitos resolveram entrar na dança, caso da Warner Discovery Media, com HBO Max e Discovery Plus, a Disney, com Disney+ e Star+, e a Viacom, com sua Pluto TV e Paramount+.
Correndo por fora, a Hulu e a Amazon com seu Prime Video; esta última, se não têm conteúdos tão bons quanto os concorrentes, faz combos com seus demais serviços. Como trunfo, o Prime anexou há semanas o acervo dos estúdios MGM (Metro-Goldwyn-Mayer) ao seu robusto catálogo.
Esvaziada destes conteúdos, antes figurando em suas opções, a Netflix se viu obrigada a investir mais pesado em sua produção própria. De animações a telenovelas, a empresa tem girado o mercado. Mas o investimento exige dinheiro, e isso acabou se refletindo no valor das assinaturas.
Quem com cancelamento fere, com cancelamento será ferido
As animações tiveram sua produção suspensa | Imagem: Divulgação Netflix
Por melhores que sejam os novos conteúdos exclusivos, muitos têm preferido não pagar para ver, cancelando assinaturas (o churn rate do início da reportagem). Há quem prefira assinar apenas conteúdos de qualidade tradicional, como a Disney+, ou aproveitar a isenção de frete nas compras via Amazon, “brinde” na contratação do Prime Video.
Como o assunto é cancelamento, algo que pegou muito mal para a Netflix foi o cancelamento de algumas séries originais. O mesmo aconteceu com a divisão de animações, muita cara para pouco retorno.
Mesmo justificado, pois não atingem um número de views satisfatórios, tais produções abrigam uma base de fãs bastante ruidosa. O cancelamento de Cowboy Bebop e O Legado de Júpiter, por exemplo, causaram movimentos nas redes sociais, clamando aos fãs que cancelassem contratos em sinal de protesto.
Reclamações espalharam-se como rastilho de pólvora. Agora, com a chamada cultura do cancelamento, basta um rumor sobre qualquer série original, para uma turba raivosa pedir o boicote ou ainda decretar a falência da Netflix.
Nossos comerciais, por favor
Não é bem por aí. É certo que a empresa vive um período complicado, mas soluções começam a ser procuradas. Uma delas vai de encontro a um dos princípios fundamentais da Netflix, poupar o telespectador de intervalos comerciais. A empresa do “N” vermelho estuda vender em breve espaço para anunciantes, como a televisão tradicional.
Não seria no serviço padrão, mas em uma modalidade econômica, segundo declaração de Hastings numa conferência em 19 de abril, voltada aos acionistas da empresa. Era um momento incômodo: entre outras “novidades”, o CEO anunciava pela primeira vez uma perda significativa de assinantes, 200 mil para ser mais exato. O tal churn rate que ninguém gosta.
A “nova Netflix” espelharia o que é feito pela Viacom, que trabalha em dois modelos: a Pluto TV, que é sustentada por publicidade, e a Paramount+, sem anunciantes, carregando o catálogo premium do estúdio.
La Casa de Papel caiu
A fala de Hastings aos acionistas reverberou de modo indigesto na bolsa de valores (Nasdaq). De um dia para o outro, as ações da empresa perderam 40% do seu valor. Segundo estudo da Bloomberg, caso a tendência continue, a perda total do valor da Netflix no mercado pode chegar a 60 bilhões de dólares.
Há causas bem definidas para esta fuga em massa de assinantes: primeiro, o valor cobrado pela empresa é superior ao de qualquer concorrente. Isto fazia sentido quando os adversários eram Hulu e Prime, com catálogos bem inferiores, mas a chegada de players gigantescos como Disney, Warner e Viacom desequilibrou a proporção;
Em segundo lugar, a declaração recente de cobrança por compartilhamento de assinaturas em endereços distintos, que além de tudo soou antipática; terceiro, a Covid 19: do mesmo modo que fez a empresa crescer no isolamento social, agora provoca a fuga de assinantes devido à flexibilização das regras de convívio. O público começa a lembrar que há outras coisas a se fazer “lá fora” além de maratonar séries na Netflix, como ir ao cinema.
Em quarto lugar, a oferta de conteúdos blockbuster pela concorrência provocou a migração de muita gente que era assinante tradicional. Só para um exemplo rápido, The Batman teve 4,1 milhões de visualizações em sua primeira semana na HBO Max. Foi uma das maiores audiências da plataforma, e a melhor de um filme da DC Comics.
Moscou contra Netflix
Em quinto lugar, a empresa líder no streaming mundial também foi vítima da guerra entre Rússia e Ucrânia. Em 6 de março, a Netflix interrompeu suas atividades em território russo, fazendo coro a outras empresas que impõem sanções ao governo de Moscou. Nisso, cerca de um milhão de assinantes foram desconectados.
Produções locais também foram interrompidas, sem a menor previsão de continuidade, como as séries Anna K e Zato. Vale lembrar, estas séries são produzidas visando também o mercado externo, caso da ficção científica Better Than Us, mostrando uma sociedade russa repleta de robôs inteligentes.
Desgraça pouca é bobagem. parte dos assinantes russos prejudicados resolveu levar o caso à Justiça Internacional: através de um escritório de advocacia, o grupo pede à Netflix a bagatela de 60 milhões de rublos (ou 3 milhões e 400 mil reais) como compensação pelo cancelamento dos serviços.
Para reverter a tendência de queda, a empresa busca diversificar o catálogo ofertado. A aposta em conteúdos interativos, até o momento desprezados pela concorrência, é um destes caminhos; além de spin-offs como episódios especiais de Carmen Sandiego, O Gato de Botas e alguns documentários de aventura, há o Trivia Quest, baseado no jogo de sucesso para celulares Perguntados, ou o divertidíssimo Pega, Ladrão. Mas ainda não é suficiente para virar o jogo.
Coisas estranhas
Ainda é cedo para predizer como estas mudanças, como o serviço mantido por anunciantes, influirão na qualidade do conteúdo. Caso se restrinja basicamente a um serviço auxiliar, pode ser uma troca de seis por meia dúzia. Porém, se os anunciantes derem as cartas, a famosa independência nos conteúdos pode se esvair.
Conteúdos experimentais como Round 6, a brasileira 3% ou mesmo a russa Better Than Us, citada anteriormente, podem correr o risco de não ver a luz, por não se adequar aos padrões. Nisso, quem sai perdendo é o assinante, e no fim das contas, a própria Netflix. É esperar pra ver. De preferência, maratonando na companhia de uma bacia cheia de pipoca.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.