Netflix - Missa da Meia-Noite - Monstros da Fé
(este artigo contém SPOILERS LEVES de Missa da Meia-Noite)
Fé é uma coisa complicada.
Talvez, ela seja a mais individual das características humanas, mas também a mais coletivizada. Enquanto praticamente todas as expressões de fé precisam de um coletivo, uma comunidade à sua volta (seja a fé “evangelista” ou não), o que está na cabeça de cada um é inteiramente único. E além disso, a fé evolui. Ela muda.
Há um momento de quietude em Missa da Meia-Noite onde o ex-detento, Riley Flynn (Zack GIlford), e sua amiga de infância, Erin Green (Kate Siegel), compartilham um pouco disso. Conversam sobre o que acontece depois da morte.
Ele, que cresceu como coroinha da pequena igreja na ilha em que nasceu, mas hoje é um agnóstico, tem uma visão totalmente centrada na ciência e na biologia. Ela, que acabara de perder um bebê, enxerga na eternidade um abraço por parte do que chama de Deus.
Dá para chamar o novo sucesso da Netflix de um drama de horror por conta desses momentos, nos quais o desenvolvimento dos personagens toma a frente, andando de mãos dadas com os elementos tenebrosos. Não há uma cena de “horror puro”, terror por terror. Como os melhores projetos, as horas onde “os monstros aparecem” estão totalmente amarradas com os conflitos pessoais, espirituais e existenciais de cada habitante da Ilha Crocket.
“Te vejo no domingo!”
Os habitantes de uma vila pesqueira, numa ilha a alguns quilômetros da costa, formam uma comunidade bem próxima e variada. Mas é como uma cidade do interior, onde nada acontece por décadas. O xerife da cidade, Hassan (o excelente Rahul Kohli), um muçulmano perdido no meio de um monte de católicos, não tem nada para fazer.
Riley começa a ir à escola dominical.(imagem: Divulgação Netflix)
As coisas mudam com uma chegada esperada, e outra surpreendente. Riley Flynn, recém liberto em condicional da prisão, volta para a sua família. Carrega consigo o fantasma da moça que sua direção alcoolizada matou.
E o padre Paul (Hamish Linklater) carrega… Outra coisa. Ele aparece na ilha para substituir o Monsenhor Pruitt, antigo clérigo conhecido por todos, que decidiu, no alto de sua velhice, peregrinar na Terra Santa. O padre trouxe, sabe-se lá de onde, um baú pesado e uma retórica teológica revigorante, cheia de vibração, promessas de ressurreição, e uma Santa Ceia muito específica.
Ele também traz milagres. Todos os fiéis da ilha começam a se sentir melhor, menos pesados pelos fardos do tempo. Mas quando o padre Paul faz a paraplégica Leeza (Annarah Cymone) andar, as coisas mudam de figura.
A médica da ilha, Sarah (Annabeth Gish) tem aquelas explicações científicas que não convencem ninguém. Riley, lutando contra uma crise de fé, de culpa, e trabalhando com o padre para se livrar do alcoolismo, começa a investigar Paul. E parece que tem alguma coisa grande, estranha e faminta voando pela noite.
O papado de horror da Netflix
Missa da Meia-Noite é comandada por Mike Flanagan. O diretor começou sua carreira com alguns filmes de horror de pequena expressão. Mas em 2017 chamou a atenção de todo mundo ao adaptar uma das histórias mais bizarras e complicadas de Stephen King: Jogo Perigoso, filme lançado pela Netflix.
A partir daí, juntou um time especial para iniciar uma dinastia de horror inteligente na Netflix. Kate Siegel (casada com Flannagan), Carla Gugino (estrela de Jogo Perigoso), Henry Tomas (o eterno garotinho de E.T. - O Extraterrestre), e também os compositores Irmãos Newton e o cinegrafista Michael Fimognari. Flanagan leva todo mundo na garupa.
Ele adaptou dois livros clássicos, A Assombração da Casa da Colina e A volta do parafuso em duas minisséries fantásticas sobre fantasmas, A Maldição da Casa Hill e A Maldição da Mansão Bly. Ambas tratam de famílias disfuncionais, loucura, suicídio e fantasmas que, mesmo na pós-vida, mantém sua humanidade, suas dúvidas e medos.
E para o próximo sermão, o papa decidiu mudar as coisas:
Primeiro, trocou o “elemento satânico” no centro da trama. Saem fantasmas, e entram (spoilers!).
Segundo, focou num número menor de episódios do que os “enlatados Netflix” estão acostumados. Várias séries (até mesmo as suas) sofreram com uma quantidade engordada de episódios, mas aqui, 7 é o número divino.
Terceiro, e mais importante, Flanagan contaria uma história autoral, mas muito próxima de elementos conhecidos. Tanto o foco em gente comum e trabalhadora, classe operária de uma cidade marítima, quando o ritmo, lento no começo, lembram bastante seu parceiro de adaptações, Stephen King.
Flanagan, além de Jogo Perigoso, adaptou para os cinemas Doutor Sono. O resultado não foi tão arrebatador, mas a coragem de fazer uma continuação de (checando aqui) O Iluminado, de Stanley Kubrick, prova a ousadia do diretor.
Fé das trevas
Stephen King, ao longo de sua extensa e invejável carreira, sempre abordou a fé e as instituições religiosas como criadouros de monstros terríveis. A obsessão dos personagens de King levam a pactos macabros com forças sinistras (mas nem sempre sobrenaturais), e muitas vezes isso passa pela religiosidade.
Cheia de boas intenções. (Imagem: divulgação/Netflix)
Embora isso esteja espalhado por Missa da Meia-Noite, em especial no papel da assustadora Bev Keane (Samantha Sloyan), a beata fanática que não larga o pé do padre, a minissérie busca um olhar (e um questionamento) mais aprofundado.
Em Missa da Meia-Noite, a fé é algo que serve tanto para salvar como para condenar e destruir. É a fé na comunidade, na igreja, em Deus, que mantém a cidade de pé, mesmo no meio de um terror bem realista que derruba a economia da cidade. A fé gera também o mecanismo do perdão, algo sem o qual família nenhuma sobreviveria.
Numa cena poderosa, Leeza, agora andando, vai confrontar o “bêbado da vila”, Joe (a arma secreta de Flanagan, Robert Longstreet), responsável pela paralisia dela. E a intensidade e a honestidade dos personagens de Flanagan brilham aqui, onde raiva, ódio, incompreensão e culpa se misturam numa coisa tão difícil de definir quanto a nossa reação perante um milagre. Seja este milagre uma pessoa idosa rejuvenescer, seja a atitude do perdão.
Mas é a fé, tanto do padre quanto de Bev, nos milagres progressivamente perigosos e numa forma de controle da comunidade, que deflagra uma transformação caótica, resultando em profundo horror e sangue.
O fanatismo religioso já é potente e destrutivo o bastante quando suas armas são a mentira, o ódio, o abuso e o preconceito. Quando brota no meio de uma comunidade machucada, desesperada e sem rumo, o resultado é sempre tragédia.
O princípio tenebroso da incerteza
Missa da Meia-Noite constrói o interior de seus personagens com paciência. Mesmo os momentos de dúvida são reconhecidos por qualquer um que já olhou para as estrelas e viu uma certa ordem espiritual ali. Mesmo alguém, como o padre Paul, que, no final, escancara suas intenções questionáveis, tem sua humanidade à flor da pele. Hamish Linklater, conhecido por sua participação no fantástico Legião, cria aqui um homem que não consegue dar dois passos de certeza sem um de dúvida.
As “coisas que estão acontecendo à sua volta” lhe enchem de temor e de maravilha em doses iguais, e Linklater transmite isso com sua linguagem corporal, seu olhar, e o poder de sua voz. Seus trejeitos paroquiais foram inspirados em famosos pastores norte-americanos, e o trabalho técnico para não transformar sua performance numa caricatura. Ao contrário, cria momentos de pregação enervantes, que faz com que as cenas dentro da igreja sejam algumas das mais impactantes da série.
Zack GIlford entrega, na crise de consciência de Riley, uma outra versão da incerteza. Sua crise de fé é abalada só por conta dos “efeitos especiais”, porque ele tem certeza de que está “sozinho no universo”. Sua hesitação está em como enxerga a si mesmo: responsável por tirar uma vida e assombrado por um momento de irresponsabilidade, ele é inundado por uma culpa muito pouco católica. Riley não sabe o que fazer com seu futuro e como encontrar uma fagulha de valor nele.
“Era só o que faltava. O de menor agora é crente.” (imagem: Divulgação/Netflix)
O xerife Hassan tem outro tipo de problema. Seu filho, Ali (Rahul Abburi), se mostra muito mais impressionado com os desígnios do Deus cristão do que de Alá, e cria em seu núcleo familiar um tipo muito mais complexo de “embate de gerações”. E uma visão tão pouco retratada na mídia ocidental, que é a reação de outras fés a um expansionismo bem ocidental.
Monstros da noite
O elemento de horror central de Missa da Meia-Noite é um dos mais clássicos, metafóricos e reproduzidos do cinema. A série recontextualiza a mitologia para encaixar-se numa visão apocalíptica e pra lá de “carismática” do catolicismo de uma maneira surpreendentemente original. A trilha sonora é quase inteira composta por hinos cristãos, rearranjados para serem melancólicos e assustadores.
Religião e horror andam de mãos dadas desde sempre, porque ambos tocam em coisas que não só não entendemos, mas onde “não entender” faz parte da “graça”. Quando estamos perante algo inexplicável, a primeira reação é culpar Deus, o universo, os poderes e potestades.
E a fragilidade humana perante forças impiedosas, como a força do tempo, da culpa, do que chamamos de Deus ou até de criaturas maléficas (sejam elas reais ou não), é a base do horror. De que pouco podemos perante um universo que nos considera insignificantes.
Só que não somos insignificantes. Somos parte de algo imenso. Pequenas maravilhas envoltas em confusão que nunca vão transformar fé em certeza. Pode ser numa pequena comunidade, destinada à ruína pelos desejos loucos de alguns poucos. Pode ser numa família em processo de cura. Pode ser numa paróquia cheia de gente quebrada.
Mas é ao fazer parte de algo que podemos existir de verdade.
Imagem de capa - Divulgação/Netflix