NFT: Para além do hype - Parte 1
Hoje em dia é praticamente impossível acessar a internet e não ver alguma discussão sobre o termo NFT.
Tornou-se cada vez mais comum aparecem notícias de que algum famoso aleatório ou uma empresa qualquer adquiriu obras de arte digital por um valor astronômico e aí os memes tomam conta.
E toda essa zoeira faz sentido, já que em muitos casos, os motivos e as utilidades da tecnologia não são bem compreendidos, os paralelos entre o mundo físico e digital parecem ser uma barreira abstrata demais e acabam por afastar muita gente de entender o seu significado.
Neste artigo pretendo explicar em uma linguagem acessível o que é a tecnologia, explorando suas funcionalidades e colaborar um pouco com o debate sobre se realmente suas funcionalidades trazem benefícios e quais suas possibilidades de uso.
O poder da descentralização
Mas, antes mesmo de se discutir os conceitos, o significado da sigla e tudo mais, penso que é preciso compreender o que está por trás, o que a tecnologia blockchain pode nos oferecer e quais potenciais ela permite explorar.
Isto porque, para uma grande parte das tarefas diárias que fazemos, seja acessando um conteúdo na internet ou comprando e negociando coisas, estamos quase sempre condicionados à atuação de um intermediário, um órgão oficial que vai legitimar o ato ou alguma empresa que vai controlar nossos interesses.
É o que acontece por exemplo, quando vamos comprar um veículo ou uma casa, onde um dos passos, inclusive com obrigação legal, é o registro em cartório, ou quando vamos acessar um conteúdo na internet que fica condicionado ao uso de alguma rede social.
Observe que nem o cartório nem a plataforma de mídia participam do negócio, eles não criam, nem geram nada, mas se colocam entre comprador e vendedor, produtor de conteúdo e usuário, gerenciando o negócio, cobrando taxas ou explorando nossos dados e interesses.
A descentralização é um princípio que visa justamente o contrário, a possibilidade cada vez maior de que as pessoas produzam seus conteúdos, façam negociações, interajam entre si, de uma forma cada vez mais livre e autônoma. Essa é a principal promessa disruptiva das criptomoedas e de projetos descentralizados como os NFT’s.
O que é um “token”
Voltando para os NFT’s, a primeira dificuldade é entender o que significa, já que é uma sigla em inglês para token não fungível (non fungible token). Mas afinal o que é um token e além disso o que é uma coisa não fungível?
Bem, você certamente já ouviu falar do bitcoin, a moeda virtual que deu início ao universo das criptomoedas, certo? Então, o bitcoin é um token e basicamente é a representação de uma moeda só que em formato digital.
Mas como isso é possível? Graças à Blockchain.
Pense num livro de registro, sabe aqueles cardeninhos onde você vai anotando suas dívidas, tarefas, quem te deve? Pois é, de forma bastante superficial uma blockchain (existem várias) pode ser entendida como uma espécie de livro de registro virtual.
Nesse livro, o registro, a validação, a segurança da rede são garantidas através do poder computacional e da criptografia, através de uma estrutura que remunera os usuários que fazem ela operar, de uma forma segura e à prova de fraudes.
É esse sistema de registro que permite a criação dos tokens que nada mais são que um ativo digital que pode dar diversos poderes a quem o possui, seja o poder de moeda das criptomoedas, o acesso a voto, direito de ação, acesso a produtos. O NFT é um tipo desses diversos ativos.
Os NFT’s
Bem, portanto, a blokchain permite exatamente a criação de relações descentralizadas, ou seja, a partir de agora é possível que as pessoas negociem entre si sem que por exemplo tenham que fazer uma transferência bancária, em um banco privado, ou usando dinheiro físico controlado pelo Estado.
É possível ainda que as negociações agora aconteçam não somente com a utilização de criptomoedas mas com a garantia de que determinado bem ou produto seja registrado e validado como único.
E essa é a principal inovação dos NFT’s, são justamente representações em blockchain, token criados sobre um padrão específico de tecnologia (ERC-721) que permitem a criação de um ativo único, especial, sem qualquer outra cópia na rede inteira.
Esses tokens são chamados de não fungíveis, por que possuem uma característica que os tornam próprios, exclusivos. De modo simples, esse termo fungibilidade é usado para identificar se uma determinada coisa ou um bem, possui alguma característica que o torne único, que vincule o seu valor às suas condições específicas (Código Civil. Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade).
O exemplo mais comum disso é a moeda. Note que não há nenhuma diferença entre uma nota de mesmo valor e outra, ou seja, uma nota de R$20 (ou 1 bitcoin) é igual a qualquer outra nota de vinte, e podem ser trocadas por qualquer outra sem perda de valor. Porém o mesmo não se pode dizer de um item de coleção, uma casa ou uma produção artística que possuem características próprias.
Portanto o que os NFT’s permitiram nesse primeiro momento da explosão do mercado foi justamente a negociação de itens ou produtos que podem ser validados em blockchain e que podem dar acesso a uma série de direitos ou à propriedade de artigos exclusivos.
O mercado
Reprodução - Twitter
Recentemente (21/01) saiu a notícia de que o jogador Neymar gastou cerca de R$6 milhões de reais para adquirir a foto de um macaco digital.
As principais críticas se deram pelo fato de ser simplesmente uma arte digital que pode ser copiada e baixada em .png ou .jpeg em qualquer computador. Um gasto compreendido como excêntrico e sem sentido.
Eu não estou aqui para defender o contrário.
Afinal, para além de todas as funcionalidades criadas pelo projeto Bored Ape Yatch Club, e o fato de que o ativo dá acesso a uma comunidade exclusiva com potencial artístico e econômico, acho plenamente válidas as críticas sobre excentricidade, capitalismo e o real poder disruptivo da tecnologia.
No entanto, não me parece que o problema seja exatamente a tecnologia NFT, já que, o gasto de dinheiro com coisas excêntricas e questionáveis acontecem dentro e fora do ambiente digital, como o caso da influenciadora que lucrou quase R$1 milhão de reais vendendo “pum engarrafado”.
Dito isso, preciso apontar que penso não existir uma moralidade aplicável às tecnologias, não creio ser possível taxa-las como boas ou ruins por excelência, mas, entende-las como o resultado de como serão utilizadas, seja para promover coisas positivas como a vacina ou negativas com a bomba atômica.
É bem provável que as formas do capital, as distorções da economia moderna passem a operar dentro da tecnologia, no entanto, me interessa o que está além, não que já exista um potencial revolucionário do sistema econômico, mas, a possibilidade de criação de novas formas e meios de relacionamento social.
As formas de uso
Para quem ainda só teve contato com o boom da arte digital, é bom que se adiante, atualmente as formas de uso estão em pleno desenvolvimento e os limites de utilização legal estão cada vez mais sendo colocados à prova.
Um exemplo é o do mercado imobiliário. No site realt.co o dono de um imóvel pode anunciar sua propriedade e criar um número “x” de tokens que podem ser negociados ao redor do mundo. Cada tokem dá direito a uma parcela dos aluguéis do imóvel.
Neste exemplo, a casa é transformada em um token NFT e permite que o proprietário divida os custos de manutenção do imóvel com outros usuários e cada detentor de um token do imóvel recebe uma porcentagem dos aluguéis.
Reprodução
Portanto, o que os NFT’s têm de diferente é exatamente o fato de permitirem o registro de itens ou produtos que podem ser negociados ao redor do mundo de forma descentralizada, abrindo um universo de possibilidades que até então não havia sido explorado e aí está a ponto e com custos diminuídos.
No processo de criação de um NFT (mint) o criador pode estabelecer alguns direitos sobre aquele item que está sendo negociado, quais direitos ele concede ou quais as formas possíveis de utilização. Podem ainda ser garantidas porcentagens fixas sobre qualquer venda futura e se o ativo faz parte de determinada coleção.
Portanto, a partir de agora é possível a criação de ativos em uma plataforma descentralizada, que não tem um dono e não controla os dados de seus usuários, onde negociações podem acontecer de uma forma livre, de modo a garantir a remuneração justa de seus criadores e com baixos custos de transação.
Atualmente as negociações vão desde a venda de música, arte digital, games, venda de joias, tickets, coleção de roupas, tênis, tatuagens, desenhos, até espaços no corpo para tatuagens (sim, isso mesmo, pessoas vendendo espaços no corpo para quem quiser tatuar).
No entanto as possibilidades de uso são dinâmicas e podem ser utilizadas por exemplo para fortalecer o setor da cultura de quebrada ou periférica, ajudando artistas menores a receberem os valores justos por uso de suas produções, estabelecerem direitos de royaltes futuros ou potencializar formas de financiamento coletivo.
Talvez ocorra a potencialização de coletivos e projetos de inovação social que encontrem dentro da tokenização uma outra forma de explorar seu potencial produtivo que normalmente não é valorizado pelo mercado, é o caso por exemplo da agricultura familiar ou da “economia de base favelada”.
Conclusão
Em um próximo artigo pretendo explorar de forma mais profunda a tecnologia, as formas de uso atuais e os reflexos de sua utilização sobre os instrumentos e a estrutura jurídico-legal atuais.
Esse primeiro artigo, visou inicialmente ampliar um pouco o espaço do debate e escapar um pouco de generalizações mais superficiais.
As discussões sobre a adoção da tecnologia parecem incipientes, mas já atraem um grande interesse, sobre questões de controle pela administração pública, sua adequação a leis municipais e estaduais ou quais os limites de mercado.
No âmbito da produção cultural existe um efervescente debate sobre os direitos de autoria e patentes atrelados à arte digital, como a de que até que ponto a transferência do token registrado em blockchain reveste realmente a transferência da arte ou do produto, ou apenas o direito de uso.
Enfim, por enquanto espero ter contribuído de alguma forma para ampliar o debate sobre o tema.
E por fim, gostaria de homenagear e compartilhar o último tweet em vida de Elza Soares, deusa-mulher à frente de seu tempo e seu mundo, justamente sobre a tecnologia NFT. Ela que em julho de 2021 inovou ao negociar royaltes de remasterização de “Drão” a quem possuísse o token digital.
Este artigo foi escrito por Verber Alves de Souza e publicado originalmente em Prensa.li.