Nossa louca tecnologia
Imagem: Eric Krull / Unj
Depois dos cinquenta, você ganha automaticamente o direito de falar mal da tecnologia. Dizer sem titubear: “no meu tempo era melhor”. Na maioria das vezes, sem perceber que esse agora também é seu tempo.
Como estou nesta fase (não escondo idade, 52 bem vividos e contando), resolvi destilar algumas reclamações e picuinhas. Mas adianto: sou entusiasta de tecnologia. Não aguento ver novidades sem correr atrás. Mas como adquiri o sagrado direito, deixa eu comentar.
Interatividade, sem interação
É simbólico entrar num restaurante e observar pessoas sentadas à mesa, aguardando suas refeições. Há pouco, riam, debatiam algum assunto, ou calavam num silêncio constrangedor, porque um dos comensais abordou um assunto espinhoso. Mas interagiam. Sim, aquela coisa estranha chamada conversa.
Agora, cada um dos participantes do rega-bofe estará lá: desconectado dos demais, olhos perdidos numa tela de alta resolução, dedos deslizando em movimentos nervosos. Consultam redes sociais, enviam mensagens, jogam, e só lembram dos demais quando a comida chega, entre colheradas de arroz e um gole de refrigerante zero. Depois de fotografar seus pratos e postar naquela rede social, é óbvio.
E uma família com crianças na mesma situação? Era comum ouvir brincadeiras, gargalhadas, choro porque não queriam comer brócolis… arrematadas por ameaças veladas ao final da frase, como “você vai ver quando a gente chegar em casa”.
Atualmente, pais conferem suas redes enquanto suas crias, imersas no vídeo de um tablet, acompanham alguma dancinha constrangedora, ou permanecem hipnotizados por um desenho animado. Isso possibilita aos adultos um efêmero momento de paz. Se a animação tiver uma musiquinha pegajosa, melhor ainda.
Outro sinal dos tempos: dê uma volta, sem olhar para a tela do seu smartphone. Caminhe em um shopping center, um parque, ou mesmo numa movimentada avenida.
A chance de ser abalroado por alguém com olhos grudados na telinha é de 63%, segundo pesquisa do Instituto Nacional de Fatos Aleatórios. Caso você esteja com os olhos pregados no celular, a probabilidade vai a 99,8%. Se estiver assistindo a dancinha constrangedora, cuidado: chance de 140% de impacto.
A prevalência urbana dos zumbis digitais é tão grande que algumas cidades, como Washington, nos Estados Unidos, e Chongqing, na China, implantaram calçadas exclusivas para que estes usuários não colidam com o resto dos cidadãos.
Curtindo a vida adoidado
Tanta informação disponível nos condicionou a buscar cada vez mais e mais informação; não podemos saber (ou interagir) menos que o colega. O byte do vizinho é sempre mais verde. Não conseguimos definir se este é um círculo virtuoso ou um círculo vicioso.
A dependência digital, sobretudo de algumas redes sociais, é comparável ao uso de entorpecentes. Noutras palavras, abstinência, agravada com o evento da pandemia.
Perder a conexão, mesmo temporariamente, é causa de angústia e depressão. Procuradas como um local de contato, interação social e conforto imediato, tornam-se armadilhas psicológicas em questão de meses.
Parece loucura, mas isso tem diagnóstico médico e atende pela simpática sigla FOMO, ou Fear Of Missing Out. Aquele medinho besta de ficar desinformado sobre o que acontece no mundo digital. E acaba virando uma tremenda paranóia.
Curtir tornou-se imperativo. Dar o seu “joinha”. De acordo com a psicóloga Ana Belén Medialdea, em entrevista ao jornal espanhol El País, “O feedback positivo faz que nosso cérebro libere endorfinas, então associamos o reforço positivo às sensações agradáveis que sentimos ao receber esse estímulo, que, por sua vez, se torna aditivo”. Resumindo, o que nos deveria melhorar como uma civilização conectada, pode nos descivilizar.
Nunca é tarde para relembrar aquele conselho de avó: “tudo o que é demais, faz mal”.
A roda digital da fortuna
Não apenas as agruras de uma sociedade conectada movem nossa boa e nova tecnologia. Progredimos numa velocidade inquestionável, em diversas áreas. O mercado financeiro, mais especificamente o setor bancário, guarda o melhor exemplo.
Até a segunda metade dos anos 1980, pagar as contas do mês envolvia gastar sola de sapato, somada à uma dose incomensurável de paciência. Hora de enfrentar filas, temperadas por variações de humor dos funcionários das agências. O calvário dos pobres clientes que desejavam apenas quitar encargos e dívidas.
Tudo melhorou com a chegada dos Caixas Eletrônicos, na época multiplicando-se pela América do Norte e Europa. Terminais de autoatendimento aptos a receber cheques, distribuir cédulas, equipados com o melhor poder computacional permitido na época. Inferior ao que o smartphone no seu bolso tem hoje.
Instalados em pontos estratégicos das cidades, estas cabines milagrosas mudaram o relacionamento do brasileiro com as instituições bancárias. Mas ainda não evitavam a formação de longas filas: às vezes, por melhor que seja o hardware e a interface, o ser humano teima em não funcionar satisfatoriamente.
Um passo à frente dos demais setores no desenvolvimento tecnológico voltado ao usuário final, os bancos trabalharam rápido e os problemas de acesso diminuíram. Outro empecilho se apresentou: afinal, o Caixa Eletrônico trazia tudo o que uma agência tradicional poderia ter, com exceção do cafezinho – e da segurança.
Criminosos desenvolveram novas modalidades, como as populares saidinhas de banco, sequestros relâmpago, explosões das máquinas e em alguns casos, o próprio transporte dos equipamentos com tudo o que havia dentro.
Dinheiro virtual, problemas reais
O setor dobrou a aposta e lançou os sistemas de internet banking. Porém, criminosos aprenderam a hackear plataformas, desviar dinheiro de contas e outros adoráveis métodos de usufruir do alheio.
Hoje em dia, o mais comum é o combo envolvendo identidades falsas no WhatsApp, conversa mole e chaves de Pix. A criatividade humana não conhece limites, para o bem e para o mal.
Não é tarde para lembrar que estamos em vias da implantação do Real Digital, a criptomoeda brasileira; podem ter certeza, o crime eletrônico já tem meios para subtraí-la.
O avanço da tecnologia bancária trouxe à reboque um problema social; centenas de profissionais de atendimento, os mesmos que resmungavam para o sofrido cliente, perderam postos de trabalho, substituídos pelos frios, insensíveis e mais baratos computadores.
No escritório. De pijamas
A pandemia proporcionou uma evolução inegável, que veio para ficar: o home office, ou se preferir, teletrabalho. Vamos combinar: a maioria das soluções, como reuniões online, acesso remoto e outras sacadas, eram tecnologias preexistentes.
Acontece que o mercado preferia pagar pra não ver. Por medo do novo, por uma certa comodidade empresarial ou até mesmo preguiça. Num evento global inédito e vidas em jogo, algumas inovações foram finalmente aplicadas, muito se improvisou e hoje o trabalho à distância é uma realidade.
O custo operacional das empresas caiu. Logo se concluiu: menos custo, somado a um funcionário feliz, fecham a conta. A coisa evoluiu ao ponto de ser possível trabalhar, inclusive batendo ponto, a milhares de quilômetros da sede da empresa. Mantendo a produtividade igual, ou superior. Vale a pena, para todos os envolvidos.
Obsolescência antecipada
Caminhando por um centro financeiro de uma capital, por exemplo a Avenida Faria Lima, em São Paulo, observamos suntuosos edifícios. Abrigavam o state of art da tecnologia, onde budgets bilionários eram calculados de olho no after market, visando um polpudo profit (ou pelo menos chegar ao break even point) e outros termos esquisitos no idioma de Shakespeare.
Graças ao home office, o setor imobiliário encara uma crise inesperada: muitos destes edifícios, cujo valor pelo metro quadrado é comparável ao do Primeiro Mundo, encontram-se vazios ou subocupados, verdadeiros templos silenciosos dos novos tempos.
O grande irmão está de olho no seu carro
Empresas e órgãos governamentais, responsáveis pela administração de vagas rotativas nas cidades de médio e grande porte, passaram a economizar graças à tecnologia. Anteriormente, era necessária a utilização de cartelas preenchidas pelo motorista, afixadas no pára-brisa dos veículos e fiscalizadas por agentes de trânsito, circulando pelas ruas à pé.
Hoje, as vagas são assinaladas por aplicativos dos celulares, utilizando serviços de geolocalização; a monitoração é realizada tanto por agentes de trânsito quanto por sistemas móveis a bordo de veículos dedicados.
Os radares de trânsito, antes sistemas eletromecânicos que disparavam câmeras fotográficas baseadas no registro do excesso de velocidade, hoje fazem reconhecimento de imagem, escaneando veículo e placa. Em sua maioria, ligados a bancos de dados com a capacidade de contatar a Polícia. Bobeia, pra ver o resultado.
Sobe e desce
E aqueles elevadores moderníssimos? Antes, escolhíamos para onde queríamos ir. Agora, eles escolhem para onde você vai. Em São Paulo, entrei em alguns destes edifícios inteligentes. Precisava ir ao quarto andar. O painel me mandou embarcar no Elevador B, D, E, sei lá, o que estava a fim de passar pelo andar que precisava ir. Dentro da cabine, nem botão direcional há. Você que tenha a sorte de ter digitado o andar certo.
Certa feita, meu marido e eu resolvemos visitar o magnífico mirante do edifício do SESC da Avenida Paulista. Enfrentamos uma boa fila, cheia de gente entusiasmada para fazer o passeio. O mirante deve ser magnífico mesmo, mas nunca descobrimos. Caímos na besteira de entrar no elevador errado, e não conseguimos desembarcar onde precisávamos. Ficou para uma próxima.
E no SESC da Paulista mesmo tivemos outra grata surpresa tecnológica. Já que o elevador nos proporcionou a saída em uma bela biblioteca, passamos alguns minutos folheando algumas publicações. Antes de ir, resolvi dar uma passadinha no banheiro. Quando me aproximei da porta, quase morri do coração. A mesma se abriu silenciosa e bruscamente, fazendo-me entrever as maravilhas sanitárias do século XXI, mas com tanta empolgação que saí com taquicardia.
Necessidades com emoção
Para encerrar, esse banheiro me trouxe a lembrança do dia em que resolvemos conhecer um restaurante chinês na Zona Sul da capital paulista. Tudo excelente, tivemos um jantar maravilhoso. Mas antes de chamar o carro, resolvi dar aquela passada estratégica no WC.
De repente, um revestimento sintético correu por cima da tampa do vaso sanitário, a fim de me proteger do contato de bactérias ou alguma moléstia inesperada. Tão rápida e eficiente que me desconcentrou. Tive um ataque de riso, e precisei voltar a si para usar do jeito certo aquela louça sanitária.
A tecnologia é boa, eu gosto, mas às vezes assusta.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.