Nossa pobre cultura audiovisual
Triste e vazio | Imagem: Felix Mooneeram/Unsplash
O título não é nada além de uma provocação. Clickbait, se preferir. Afinal, reconhecidamente temos uma das melhores indústrias de produção de conteúdo do planeta. Na questão da dramaturgia, então, somos professores. Então, por que esse título pegajoso aí em cima?
Bom, a coisa não é exatamente assim. Nossa tevê talvez só fique atrás da norte-americana e da inglesa em matéria de qualidade e diversidade de produção. Já no quesito criatividade, vem a cada dia lançando mão de mais e mais formatos adquiridos no exterior. Teriam nossas ideias acabado?
Não que esta seja novidade. A televisão brasileira, principalmente nos anos 1960, fartou-se de se inspirar na TV argentina. Nossos hermanos eram a bola da vez naquela época, e não à toa.
Empresas de comunicação dos Estados Unidos transformaram as emissoras argentinas em laboratórios de formatos. NBC, CBS e ABC tinham, inclusive, participação societária em canais de TV de Buenos Aires, coisa que só foi extinta com o golpe militar de lá, nos anos 1970. A nós, cuja legislação não permitia essa ingerência, restou copiar sem pedir licença.
Hollywood brasileira
Mas como podem perceber, já me perdi aqui nestes devaneios, então voltemos ao cerne da questão: por que escrevi essa pobre cultura audiovisual?
Porque não é só de TV, streamings e YouTube que vive nosso conteúdo.
Nosso cinema, com potencial para ser um dos maiores do mundo (não se esqueçam, nosso país tem quase 213 milhões de habitantes, é público até dizer chega), respira basicamente por aparelhos. E isso, infelizmente, não é novidade.
Até os anos 1940, nosso país não tinha tradição de produção. A visão mudou no final da década, com o lançamento da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Inspirada pelos estúdios de Hollywood, com estrutura baseada no pólo italiano da Cinecittá, a Vera Cruz veio mostrar ao país como fazer cinema.
Trouxe equipamentos de ponta, importaram e criaram profissionais de primeira linha. Suas produções foram sucesso instantâneo de bilheteria, numa época em que todo bairro que se prezasse tinha sua sala de exibição.
Infelizmente, sobrou idealismo e faltou planejamento. A empresa só operou entre 1949 e 1954, afundada em dívidas tão grandes quanto seu sonho. Ainda assim, dos seus imensos estúdios saíram clássicos como Caiçara, Apassionata, Veneno, Tico-Tico no Fubá, e é claro, O Cangaceiro. Foram 22 filmes em cinco anos, o que denota bem a pretensão de cinema industrial da empresa.
Seus estúdios se transformaram em um elefante branco para a prefeitura local, que acabou utilizando-os como centro de exposições, e apenas nas últimas décadas vêm sendo utilizados para produções cinematográficas e de tevê.
Mais sorte, neste mesmo período teve a carioca Atlântida Cinematográfica, que operou de 1941 a 1962, com um total de 66 filmes produzidos. Talvez por ter se proposto ser menos “sisuda” que a Vera Cruz: a Atlântida encontrou um nicho de mercado, as comédias, e se especializou nisso. Eram as populares chanchadas. Fez fortuna com elas, geralmente produções de baixo custo, e teve vida mais longa. As produções com Oscarito e Grande Otelo são um sinônimo de sua história.
Coisa não muito diferente aconteceu com o terceiro grande estúdio, a Maristela Filmes, criada no bairro do Jaçanã, na capital paulista, em 1950. De seus estúdios saíram nada menos que 60 filmes em oito anos de operação. A Maristela tinha um grande trunfo em relação às concorrentes: um contrato garantia a distribuição de seus filmes em parceria com a Columbia Pictures. Entre suas produções, figuram Meu Destino é Pecar, Presença de Anita, Simão o Caolho, A Pensão de Dona Stela, O Canto do Mar, Quem Matou Anabela, Arara Vermelha, entre muitos outros.
Curiosamente, apesar de ter cessado a produção própria ainda nos anos 1950, a Maristela continua ativa até hoje, prestando serviços diversos ao mercado.
A queda
Em parte esvaziada pela profissionalização e popularização da televisão, a produção e as salas de cinema foram esvaziadas. A comodidade de assistir aos filmes em casa acabou tirando boa parte do público, e claro, os recursos financeiros.
Porém, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e em outros países, as companhias produtoras, em vez de enxergarem a TV como uma aliada e direcionar as produções para o novo meio, acabaram fechando as portas. Culpa em boa parte do modelo de negócios adotado por nossas companhias de tevê, por décadas baseadas exclusivamente em produção própria. A história teria sido muito diferente se esta linha de pensamento não fosse vigente.
Isso começa a mudar razoavelmente, onde novas companhias de cinema, nenhuma tão gigantesca quanto suas antecessoras, passam a trabalhar de mãos dadas com a televisão aberta e por assinatura, e principalmente com os serviços de streaming. E o melhor de tudo, existe público.
E agora?
Mas e o nosso velho cinemão, como vai?
Bem, há iniciativas como as da Globo Filmes, que apesar de uma queda em suas produções, e completamente dependente do Grupo Globo para distribuição e divulgação de conteúdo, marcou belos pontos na história do cinema nacional, enxergando a mesma necessidade e nicho que a Atlântida percebeu décadas atrás: cinema de humor.
Mas o brasileiro não se motiva como o público estadunidense para sair de casa, a fim de ver um filme feito no Brasil. Aqui vemos alguns problemas, pelos quais poderei ser cancelada nas próximas linhas. Vamos lá:
De meados dos anos 1960 para cá, o cinema brasileiro abriu uma enorme vertente, que são as produções com preocupação social. Coisa que faz com maestria. Desde os filmes de Gláuber Rocha, lá atrás, até o recente Marighella de Wagner Moura, passando pelo premiadíssimo Cidade de Deus, o país passou a mostrar sua cara nas telas de maneira forte, verídica, tensa, nua e crua.
Não me entendam mal: estes filmes são necessários, imprescindíveis e uma ferramenta de conscientização social sem igual. O problema aqui é que eles também ficam nichados demais em um público específico. E para uma indústria cinematográfica forte existir, precisa girar a roda da fortuna. Precisa de público, precisa de dinheiro, para manter a máquina funcionando. Mesmo Tropa de Elite, que atingiu milhões de espectadores, também têm esse pé na exposição das chagas sociais.
A desastrosa interferência do governo militar nos anos 1970, criando a Embrafilme e abrindo as torneiras para a produção nacional, sem um planejamento significativo, criou coisas díspares como filmes de temática tremendamente ufanista, como o clássico Independência ou Morte. E também centenas de produções de baixo custo com conteúdo erótico, disfarçadas de comédias, as igualmente clássicas pornochanchadas.
Ainda assim, as comédias nunca perderam seu status. Impulsionados pela popularidade de seu programa na tevê, os filmes dos Trapalhões, direcionados ao público infanto-juvenil, fizeram bilheterias históricas, muitas figurando até hoje entre as principais do cinema nacional.
Golpe de misericórdia
Mal e mal, a pornochanchada fez a produção cinematográfica do país sobreviver aos tropeções. Até que o governo Collor, extinguindo a Embrafilme no início dos anos 1990, desferiu um dos piores golpes na produção cultural brasileira.
De uma hora para outra, tudo parou e muita gente se viu sem trabalho. Alguns conseguiram se realocar em tevê, na publicidade, mercado de eventos, mas cinema mesmo que é bom, demorou para voltar a caminhar. Foi um hiato de alguns anos antes que Carlota Joaquina, Princesa do Brazil viesse à luz.
Aos poucos, a produção veio numa retomada que permitiu que boas produções chegassem às salas de cinema. Poderia ser melhor, sem dúvida, caso as temáticas fossem melhor pensadas, melhor planejadas. O fechamento de milhares de salas de exibição por todo o país também não contribuiu em nada. A crise transformou um sem número de bons cinemas em estacionamentos, lojas, igrejas evangélicas ou coisa parecida.
Se não fossem as redes de salas de exibição voltadas para shopping centers que proliferaram em poucos anos, a situação seria pior. Ainda assim, há um imenso número de municípios que não dispõe destes grandes centros comerciais, e por consequência, sem nenhuma sala de cinema.
Persistência e resistência
Ainda assim, tivemos sucessos marcantes: da leva recente não podemos esquecer, além dos Tropa de Elite, a franquias Minha Mãe é uma Peça, de Paulo Gustavo e Se Eu fosse Você, de Daniel Filho. Além do bastante questionável Nada a Perder, autobiografia do líder da Igreja Universal do Reino de Deus, usando técnicas de caráter duvidoso para inflar bilheterias.
A produção vinha num ritmo crescente, fomentada em muito por leis de incentivo, que faz parte dos recursos obtidos pelo imposto de renda de empresas ser destinado ao fomento de produção (ao contrário do que certos setores do nosso desgoverno querem fazer acreditar). Uma das poucas tábuas de salvação têm sido a distribuição primária nas plataformas de streaming, sobretudo as especializadas.
Descaso
Falando em governo, nosso cinema e o setor cultural como um todo se veem em um dos piores momentos de crise da sua história. Não há o menor interesse em incentivar a produção, a não ser que ideologicamente lhes seja favorável.
Toda a sorte de empecilhos é colocada para emperrar a produção. Há filmes que estão em fase de finalização e simplesmente não conseguem chegar ao público pois estão travados em alguma instância.
Não podemos esquecer do que é feito sistematicamente à pobre Cinemateca Brasileira, o maior centro da nossa memória audiovisual, que guarda muito do acervo destas companhias históricas, além de boa parte dos arquivos da TV Tupi, a primeira emissora brasileira, sem a qual nossa televisão não seria a potência que é hoje.
A Cinemateca vem sendo dilapidada, destruída (além da conservação inadequada, boa parte de seu acervo foi perdido em um incêndio tenebroso) e aparentemente ninguém se importa com sua manutenção ou recuperação. Por motivos estritamente ideológicos.
Esperemos que mais para frente essa tendência mude, e que o país possa se reencontrar (ou finalmente, se encontrar) com seu cinema.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.