Novela: 70 anos de próximos capítulos
Sua Vida Me Pertence: tudo começou com um beijo / Divulgação: Diários Associados
É incrível pensar que as telenovelas estejam no ar no Brasil há exatos setenta anos, apenas um ano a menos que a própria televisão.
Tudo começou com Sua Vida Me Pertence, trama exibida pela Tupi de São Paulo, que além de ser a primeira produção do gênero, trouxe também o primeiro beijo e a primeira reclamação pública de telespectadores contra a pouca-vergonha que a tevê levava para a casa das famílias e cidadãos de bem.
Beijinho doce
Veio daí também a primeira explicação satisfatória para acalmar os ânimos. Foi apenas um beijo técnico. Ouvi da própria Vida Alves, atriz que protagonizou o selinho em questão: “era beijo mesmo, não existe beijo técnico”, enquanto ria do engodo que ela e Walter Foster (proprietário dos lábios na outra extremidade do beijo) aplicaram no público e imprensa da época.
Imagino o choque do público de 1951 assistindo ao último capítulo de Verdades Secretas II. Tinha pensado em comentar aqui, mas vou deixar a cargo da colega Clarissa Blümen, aqui nas páginas da Prensa.
Laços de Família
Nunca me considerei um grande noveleiro. Fato é que nunca tive muita paciência… e nasci em uma família envolvida nos bastidores de televisão praticamente desde que a televisão é televisão, ou seja, em casa sempre se comentou muito sobre o que estava acontecendo no meio, de modo muito natural.
No ano em que vim ao mundo, a Rede Excelsior dava seus últimos suspiros e cerrava as portas, portanto não tenho lembrança de absolutamente nada da incrível fábrica de novelas que existiu no extinto canal 9 de São Paulo.
Eva Wilma, sempre correndo pela praia / Divulgação: Diários Associados
Na minha casa, a preferência era para as produções da Tupi. Nasci dois anos antes da chegada da TV colorida no país, e vou contar minhas primeiras memórias de televisão são cenas esparsas de novelas: a mais impactante, por ser a primeira imagem colorida que vi, foi Eva Wilma correndo um uma praia, usando um vestido azul. Uma cena de Mulheres de Areia. Só não sei se era a Ruth ou a Raquel.
Lembro de uma cena de uma chamada de O Machão, com Antonio Fagundes (que depois foi refeita pela Globo como O Cravo e a Rosa). Lembro de outra chamada, da novela O Barba Azul, também com Eva Wilma; e não sei porque me recordo da atriz Maria Izabel de Lizandra. Fora o fato que achava o nome engraçado, mas eu tinha de três a quatro anos de idade, vamos relevar.
Lembro claramente disso tudo, assim como lembro do Pica-Pau, do Super Dínamo, dos Thunderbirds, Corrida Maluca, Fantomas, Globinho e Vila Sésamo, que eram muito mais legais que qualquer novela. Aliás, me lembro de reclamar muito quando soube que a Globo iria deixar de transmitir Vila Sésamo para exibir um tal Sítio do Picapau Amarelo. Que seria outro marco na história da teledramaturgia nacional, mas eu não queria nem saber.
Fim de uma era
Não se salvou o casamento, nem a novela / Divulgação: Diários Associados
Tenho outros excertos de memória de outras produções da Tupi, um tanto desconexas, mas algumas bem vívidas: lembro de ter acompanhado com minha mãe vários capítulos das versões dos anos 1970 de O Direito de Nascer e Éramos Seis; O Profeta, alguma coisa de Drácula e Como Salvar Meu Casamento (mais conhecida como a novela do ovo frito – busque pela abertura no YouTube e entenderá).
Estas duas últimas foram as derradeiras produções da dramaturgia da Tupi, e nunca terminaram, já que a emissora fechou as portas.
Uma novela imortal
Rubens de Falco, o vampiro brasileiro / Divulgação: Diários Associados - Cinemateca Brasileira
Bem, não exatamente. Drácula migrou de mala e cuia para a Bandeirantes, levando elenco, equipe e telespectadores (que na verdade, já não eram muitos). Lá a novela continuou e foi concluída como Um Homem Muito Especial. Contava as aventuras do afamado Conde Drácula que migrara para o Brasil no início do século XX.
Assim como o vampiro romeno, minha família também migrou para as novelas da Band. Que não foram poucas.
A Globo virou a Globo
Ela nasceu assim. Gabriela, um dos maiores sucessos dos anos 1970 / Divulgação: TV Globo
Fora do meu círculo familiar, a Globo arrebatou a preferência geral e fazia história: nesse período, produções como Selva de Pedra, A Escrava Isaura, Gabriela, O Bem Amado, O Astro, Pecado Capital e Dancin’ Days. Séries nacionais como Plantão de Polícia, Malu Mulher e Carga Pesada; a dramaturgia da Globo ganhou o mundo, além de um lugar fixo nas casas e almas dos brasileiros.
Mais um pouco, a lista teria contado com Roque Santeiro; mas não seria desta vez: considerada inadequada pelo governo militar, a novela foi interrompida e só seria produzida cerca de dez anos depois, durante a redemocratização do país.
Foi também neste período que os Estúdios Sílvio Santos, que já produziam de forma independente o programa do animador, lançaram-se a produzir novelas, exibidas pela Rede de Emissoras Independentes (REI), encabeçada pela TV Record de São Paulo. Esta já não produzia dramaturgia desde o final da década de 1960. Os Estúdios Silvio Santos, construídos nas antigas instalações da Excelsior, foram o embrião do núcleo de produção do futuro SBT. A principal produção desta época foi O Espantalho, que contou com caras externas realizadas no litoral paulista.
Número dois, não pode
Ainda na segunda metade dos anos 1970, a TV Gazeta de São Paulo produziu sua primeira e até agora única novela: Zulmira. A produção exigia o máximo da estrutura da emissora, e chamava atenção por um detalhe peculiar: a casa cenográfica foi a primeira na TV brasileira a contar com um banheiro completo.
Ironicamente, foi uma das peças do conjunto de louças do banheiro que levaria a produção a cair em desgraça: os censores acharam uma afronta a presença de um vaso sanitário em cena, e apreenderam a fita do primeiro capítulo, na data de estreia, mandando as expectativas do canal 11 paulistano descarga abaixo.
A Gazeta ainda se mobilizou para repensar a produção, mas o acaso acabou desferindo um golpe de misericórdia na pobre Zulmira: o diretor e responsável pelo núcleo de dramaturgia, Klebber Toledo, sofreu um AVC e nunca mais se recuperou.
Ainda haveria uma segunda tentativa de ativar o pequeno núcleo de dramaturgia da Gazeta: em 1980, a emissora se propôs a terminar Como Salvar Meu Casamento, interrompida bruscamente com a derrocada da Tupi, nos mesmos moldes do que a Bandeirantes fazia com Drácula. Porém nunca se chegou a um acordo com equipe e elenco.
Literatura na TV
Na mesma época, a TV Cultura entrava de cabeça no gênero, com duas vantagens de ocasião: boa parte do elenco e técnica da Tupi estava desempregado, e de olho nas eleições presidenciais de 1984, o então governador Paulo Maluf injetou pesadas verbas na Fundação Padre Anchieta, controladora do canal. A TV pública de São Paulo produziu um sem número de adaptações da literatura brasileira, nas faixas Teleconto (obras seriadas com um pequeno número de capítulos) e Telerromance (novelas de curta duração, ou como se diz hoje, macrosséries). No total, dezessete produções neste período.
Um complicado jogo de xadrez
Muitas novelas da Cultura chegaram a ser reexibidas por emissoras comerciais, sobretudo Band. Falando nela, a emissora do Morumbi realizava sua mais ambiciosa produção: Os Imigrantes, texto de Benedito Ruy Barbosa que alcançou altos índices no Ibope, fazendo que a Globo logo comprasse o passe do autor.
A trama contava a vida de três famílias principais, a partir de seus patriarcas, um português, um espanhol e um italiano, que chegaram ao Brasil no início do século XX, chegando até a década de 1980.
A Bandeirantes ainda investiria no gênero com razoável sucesso por mais três ou quatro anos, com investimento constante. Porém, de olho no crescimento da concorrente, a Globo passou a arrancar peças chave do elenco das produções da Band, tal qual num jogo de xadrez.
Como os salários oferecidos pela emissora do Jardim Botânico não podiam sequer ser equiparados, as novelas da Bandeirantes iam definhando até que foi decidida sua paralisação. A emissora entraria em um hiato de mais de uma década até apostar novamente em teledramaturgia.
Primo pobre e primo rico
Com o final da Tupi, as emissoras da antes poderosa rede foram divididas, dando origem a duas novas cadeias nacionais de tevê: SBT e Manchete. A primeira logo passou a produzir tramas de baixo, sem muito compromisso, além de apostar todas as forças na transmissão de novelas mexicanas. O próprio Silvio Santos dizia “a Globo é um supermercado, eu sou a quitanda da esquina”. Em sua visão, o público acompanhava suas produções mesmo sem grande apuro técnico.
A primeira produção nacional da rede foi Meus Filhos, Minha Vida. Essa escolha pelas produções de baixo custo só mudaria nos anos 1990, mas é assunto para outra hora.
Uma concorrente inesperada
Titila e Demonão, na primeiríssima produção da nova rede / Divulgação: TV Manchete
Já a TV Manchete, com planos muito bem traçados, não pretendia produzir novelas. A maior parte do orçamento era direcionado ao jornalismo; o restante da programação era preenchida por filmes, séries e animações. Mas já no primeiro ano, concluiu-se que investir em teledramaturgia era necessário, a fim de conquistar mais anunciantes. Marquesa de Santos, sua iniciativa de estreia, já vinha com ares de superprodução, contratando a peso de ouro diversos profissionais da Globo e muitos ainda egressos da Tupi, parados há cerca de quatro anos.
Logo viriam Antônio Maria, a sitcom Tamanho Família, diversas minisséries, Dona Beija, e outras tantas e tantas novelas, produzidas em ritmo industrial, nos moldes da Globo, e com um orçamento não muito diferente da líder de audiência. A Manchete ainda contava com uma vantagem: Marquesa de Santos fôra gravada quase inteiramente nas sede da emissora na Rua do Russel, que obviamente não havia sido concebida para isso. Quase simultaneamente ao final da gravação, foi construído o Complexo de Água Grande, tendo a maior e melhor estrutura de estúdios da época, antecipando em pelo menos dez anos o Projac (atual Estúdios Globo) e o CDT do SBT.
Tou certo ou tou errado?
Roque Santeiro: a novela que quase foi sem nunca ter sido / Divulgação: TV Globo
Neste meio tempo, a Globo finalmente conseguiu levar às telas Roque Santeiro. A preocupação dos militares não era em vão: maior produção de 1985, a novela conquistou o público de tal forma que em seu capítulo final registrou quase 100% dos aparelhos ligados, feito que só havia sido registrado duas vezes na tevê brasileira. Uma delas, no capítulo final da primeira versão de Selva de Pedra, de 1972, na própria Globo. A outra, quem diria, na final do Mundial Feminino de Basquete de 1971, pela iniciante TV Gazeta.
Embalada pela trama de Dias Gomes, a Globo emplacaria sucessos ainda maiores na sequência: Vale Tudo, Mandala, O Outro, O Salvador da Pátria, Tieta, Rainha da Sucata…
Nada será como antes
Foi então que motivada com o sucesso de Kananga do Japão, sua maior produção de época, a Manchete resolveu dar ouvidos ao Benedito Ruy Barbosa. Sim, aquele que a Globo havia arrancado da Bandeirantes há uma década, a peso de ouro. Conversa vai, conversa vem, emplacando sucessos rurais um atrás do outro, Benedito confessou que tinha um plano secreto em mãos. Um velho sonho, simplesmente descartado pela Globo, alegando ser inviável e ousado demais.
Ela virou onça e a maior dor de cabeça da vida da Globo / Divulgação: TV Manchete
Adolpho Bloch, dono da Manchete, que adorava um desafio, contratou o autor, prometendo realizar seu sonho. Nascia ali um divisor de águas na história da televisão brasileira: Pantanal.
Mas, esta e outras aventuras ficarão para o próximo capítulo. Até lá.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.