Número dois, por favor!
Não adianta fingir. Você faz. Eu faço. Todo mundo faz. Problema mesmo é quando a gente não faz. Logo, nada mais natural que abordar esse assunto com tranquilidade e naturalidade. É hora de falar sobre o que deixamos de ganhar dos nossos dejetos in natura. Sim, o popular cocô.
Todo dia, milhões de pessoas em todo o mundo produzem milhões e milhões de toneladas mal cheirosas. Apesar de fétidas, são extremamente ricas em compostos orgânicos.
Para a imensa maioria da humanidade, a simples menção de uma bela porção de fezes soa repugnante. Como é de se esperar, todas estas toneladas vão por água abaixo.
Mas uma minoria ínfima da humanidade está bastante preocupada com este desperdício. Pensando em modos de usar este monte de estrume. Como fonte renovável de energia. Como utensílios comuns no seu dia a dia. Ou até para suprir a necessidade mais premente da maioria do planeta: a fome.
Muito bem. Se até agora você não tinha feito careta, dessa não deve ter passado. Mas o assunto é sério.
Na sociedade atual, quase tudo que usamos é feito de plástico. Plástico feito a partir de resíduos fósseis, que convenhamos, também não é nada muito charmoso ou higiênico. Sem contar que não sabemos a exata disponibilidade disso.
Pesquisadores do Instituto Real de Tecnologia da Suécia descobriram métodos eficientes de transformar cocô em bioplásticos. Bonitinhos, resistentes e cheirosos quanto aqueles provenientes da famosa sopa de dinossauro chamada petróleo.
O bioplástico é sintetizado a partir do tratamento das águas residuais (sim, aquele líquido que você mandou descarga abaixo), purificadas e processadas com o uso de bactérias. Com uma vantagem: plástico comum leva cerca de três séculos (com sorte) para se degradar na natureza, já configurando um problemão per se. Bioplástico, assim que descartado, leva poucos meses para se escafeder da face da Terra.
Esse simpático bioplástico é chamado polihidroxibutirato (ou PHB, para os íntimos). A responsável pelo “trabalho” é a bactéria Zobellella denitrificans. Ela faz uma lauta refeição à partir daquele produto que foi originado à partir da sua refeição. Para ser mais preciso, o bioplástico nesse caso é basicamente… cocô de bactéria. O ciclo sem fim, como diria O Rei Leão.
A Zobellella é encontrada em mangues ao redor do mundo, tal como siris. Se alimenta dos resíduos naturais produzidos pelas plantas, animais e todo ecossistema que frequenta aquele lodaçal (inclusive os siris).
Os pesquisadores acabaram descobrindo que nossa amiga bactéria Zô (usemos um apelido, que já somos amigos) não tem frescura. Encara fácil uma mudança de cardápio, no caso trocando seu lanchinho de mangue pelas nossas tão desperdiçadas águas residuais. E aí é feita a mágica. Ou melhor, o bioplástico.
Energia que dá… gosto?
Não é segredo para absolutamente ninguém que o gás metano, usado eficientemente como combustível, é muito similar ao produzido pelo flato. Isso, o popular (e muitas vezes constrangedor) pum, aquele subproduto do produto que você faz e não tem como negar.
Logo, gerar metano a partir destes resíduos também não seria novidade. Mas e se fosse usado como fonte de energia para naves espaciais, audaciosamente indo onde ninguém jamais fez um punzinho?
Uma divisão da NASA vem estudando o assunto com afinco. O Sistema de Compactação e Processamento de Lixo da agência espacial norte-americana (você jamais imaginou que eles tivessem um departamento desses) têm investido fortunas em pesquisas com cheirinho ruim.
O órgão tem trabalhado com resíduos orgânicos para desenvolver a criação de polímeros. A ideia é utilizá-los como combustível sólido na propulsão de naves espaciais. Em breve, astronautas poderão nem precisar apertar o botão para o lançamento, apenas puxar a cordinha.
Mais que isso, o cocozinho de cada dia poderá ser usado para geração de energia básica à bordo das naves, e também em bases avançadas. Isso tem sido debatido com seriedade para uso nas missões Artemis, para a lua, ou nas futuras missões para Marte. Afinal, onde um humano estiver, lá estarão seus dejetos.
O melhor (depende do ponto de vista) ainda está por vir. E será desafio máximo para o seu nojinho, queridos leitores da Prensa.
Vá plantar batatas!
Se você assistiu ao filme Perdido em Marte, vai entender de primeira. Se não, explico: uma missão dá levemente errado, e o astronauta (vivido por Matt Damon) fica a ver navios (ou naves espaciais) isolado no planeta vermelho. Para sobreviver, é obrigado a cultivar tubérculos em terras desconhecidas.
Um grupo da Penn State University trabalha para dar uma forcinha aos astronautas em situações similares. Na pesquisa, estão conseguindo sintetizar alimentos nutritivos a partir daquilo mesmo em que você pensou. Dando uma forcinha na hora de fazer forcinha.
Para o truque, entra em ação uma bactéria: não nossa amiga Zô, mas sim a Methylococcus capsulatus (vou chamá-la de Mê). Estas bactérias que já são usadas atualmente aqui na Terra como ração para rebanhos.
Estatisticamente, elas são compostas por 52% de proteínas e 36% de gordura. Bem nutritivo para manter qualquer animal vivo, incluindo eu e você. E pensa bem, na prática elas têm mais ou menos a composição de uma coxinha. Com um temperinho, fica uma delícia.
Quanto aos 12% restantes nessa equação… bem, melhor deixar pra lá.
Olha o foguetinho!
A ideia de processar o produto do banheiro em refinados alimentos não é nova. Nem na ficção científica: o conceito do sintetizador de alimentos, introduzido nas séries da franquia Star Trek desde meados dos anos 1990, funciona assim. Tudo o que é produzido nos banheiros químicos da nave pode virar comida, enquanto viajam universo afora em velocidade de dobra.
Estas bactérias Mê reprocessam o que seria desperdiçado. Aquecidas a pelo menos 70 graus, ficam livres da maioria dos micróbios e outros patógenos que poderiam transformar a refeição em algo, digamos, menos saboroso e potencialmente letal. Segundo os responsáveis pelo projeto, o resultado é muito mais rápido do que esperar batatas do Matt Damon crescer.
O resultado é uma pasta de bactérias, o que nem é algo novo no mercado. Muita coisa que comemos hoje em dia já é mais ou menos assim. Os complementos proteicos, à base de nozes e outros grãos, só pra ficar num exemplo bem rápido, partem de um princípio similar.
Vai precisar de muito teste, mas não se pode negar o potencial revolucionário do uso (e reúso) dos nossos queridos dejetos. É bom lembrar que muita coisa desenvolvida pela NASA e congêneres, no auge da corrida espacial, foi parar depois na sua casa. Duvida?
A lista é variada:
câmeras de celular;
próteses e órteses;
alimentos liofilizados (aqueles desidratados que demoram muito pra estragar);
papinhas para bebês;
detectores de fumaça e gás;
palmilhas com maior resistência a impactos;
computação em nuvem;
microchips e…
... até mesmo o travesseiro do astronauta. Não o travesseiro em si, mas o tipo de espuma que o “recheia”, chamada “espuma de memória”, presente também em boa parte dos capacetes de motocicleta.
Logo, não duvide que mais dia, menos dia, teremos além do fast food, e da “tendência” do slow food, a chegada do shit food ao mercado. Aposto que de hoje em diante, você vai pensar duas vezes antes de puxar a descarga.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.