O amor na Era dos Dados
Os amantes (1928), quadro surrealista de René Magritte.
A conectividade no mundo pós-revolução digital proporcionou uma série de comodidades. Do acesso ao seu banco, passando pelo pagamento de contas, até pedir uma refeição sem preocupação com sujeira na cozinha para o preparo, a Era dos Dados trouxe um conforto ainda maior à sociedade contemporânea.
Ao mesmo tempo, este mundo digital trouxe dilemas, contradições e conflitos. Anteriormente aqui na coluna falamos sobre a urgência de uma ética dos algoritmos que desse conta das desigualdades inerentes à sociedade e presentes, também, na conectividade.
Mas, no texto de hoje, trago outra faceta desse dilema tecnológico: as relações humanas, e especificamente, as relações amorosas.
Há amor na Era dos Dados? Vamos pensar um pouco.
ROMEU E JULIETA
Do balcão de seu quarto, Julieta está em um misto de euforia e medo. O que sua mãe faria a si, se a visse aos beijos com um completo desconhecido. E mais: um invasor! Tendo entrado na propriedade dos Capuleto na surdina, coberto pelo manto da noite, o rapaz havia escalado a parede até o balcão, onde se debruçava, em roupas de dormir, a jovem.
Ambos estão preocupados. E se alguém os encontrasse ali, aos afagos? Era preciso dar adeus, mas Julieta diz: “a despedida é dor tão doce que ficarei aqui te dizendo boa noite até que seja dia”
Romeu (sim, você já sabia quem era, sem que eu precisasse dizer), dependurado no balcão, está extasiado. Nem lembra mais de Rosalina, o ex-amor que só maltratava seu coração. Poderia ficar ali pelo resto da vida, contemplando a bela Capuleto.
Mas a Ama de Julieta grita de dentro do quarto, e eles precisam se resolver.
Se despedem. O Montéquio segue seu caminho, esperando que no dia seguinte possa rever a doce Julieta.
Cena de “Romeu e Julieta” (1968), de Franco Zeffirelli.
Essa é uma das histórias de amor mais conhecidas e compartilhadas em todo o mundo. William Shakespeare, dramaturgo inglês da Era Elisabetana, escreveu a versão mais famosa, mas, já em sua época, a desventura dos dois amantes de Verona era um clássico na Europa.
Pouca gente sabe (ou muita gente ignora) que “Romeu e Julieta” é uma tragédia, uma história com final triste e lição de moral ao público. Shakespeare escreveu a peça como um alerta aos jovens: ouçam seus pais, senão o destino será um tanto cruel.
Outra coisa pouco recordada é que Julieta tinha recém completado 13 anos, e Romeu era um jovem de 17. Eram dois adolescentes (ela pré-adolescente) indo até a morte por um amor.
Bem, o planeta girou milhares de vezes depois disso, e hoje estamos aqui, num mundo pós-pandêmico, hiperconectado e digitalizado.
Haveria ainda Romeus e Julietas por aí, conectados nos apps de relacionamento e dispostos a tudo por um amor?
BAUMAN E MERCÚCIO NA ERA DOS DADOS
Sou um apaixonado pela peça, e recorrentemente assisto às diversas adaptações que existem. Contudo, ao passo que envelheço, tendo a gostar mais de um personagem secundário: Mercúcio, o melhor amigo de Romeu.
Explico com uma das cenas da história. Enquanto caminham para a festa dos Capuleto, Romeu debulha para Mercúcio seus sofrimentos por amor. Apaixonado por Rosalina, o jovem Montéquio diz que o amor é coisa muito dura e brutal, ferindo-o como um espinho.
Mercúcio, entre entediado e empático ao amigo, diz que “se o amor convosco é duro, sede duro também com ele, revidando todas as pancadas que der”.
Mercúcio dá um banho de realidade no Romeu (Cena de “Romeu e Julieta” [1968], de Franco Zeffirelli).
De longe, ele é o mais festivo, alegre e fiel companheiro do jovem Montéquio, a ponto de estar ao lado do amigo desde os suspiros por Rosalina até o rebú com Tebaldo, primo de Julieta, que quer ver Romeu morto a qualquer custo.
Mercúcio alude a um outro jeito de lidar com o amor, completamente distinto daquilo que Romeu acredita, dizendo: “És um apaixonado” e “estás enfiado na lama do Cupido até as orelhas”, que é um modo poético de dizer “meu querido, sai dessa, deixa de ser besta, toque o barco adiante”.
Entre o personagem shakespeariano e o século XXI pós-revolução digital, há um abismo cronológico tremendo, mas é impossível não associar a postura de Mercúcio à perspectiva amorosa dos “tempos líquidos”, como assim era chamado o mundo contemporâneo por Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que se debruçou sobre a “liquidez” dos dias atuais.
“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”, diria Bauman.
Em sua perspectiva, o mundo contemporâneo, conectado e em constante mutabilidade, teria criado o ambiente propício para a liquidez ou volatilidade das relações entre pessoas.
Absolutamente tudo, segundo Bauman, seria passageiro, de curta duração. A identidade de um indivíduo, assim, seria tão mutável que a pessoa poderia ser quem ela quisesse a cada ano, mês, dia, hora…
E, obviamente, o velho Bauman estava certo nesse sentido. O advento da Era dos Dados e da conectividade, de fato, permitem contato com culturas distintas e referências outras que, décadas atrás, seria algo impensável.
Jantar sushi em uma cidade do interior do Mato Grosso? Torcer para um time da NBA na periferia de Salvador? Curtir K-pop no Rio ou em São Paulo? Isso só é possível graças à conectividade, permitindo o acesso a bens culturais de outros territórios.
Nossos gostos, preferências e identificações se moldam e se modificam de acordo com essas múltiplas referências que recebemos por meio da desterritorialização, um fenômeno da Era dos Dados que permite ao usuário quebrar a lógica do espaço e tempo e frequentar outras culturas, grupos sociais, eventos, etc.
Um dos maiores sociólogos do século XX, Zygmunt Bauman (Foto: SAMUEL SÁNCHEZ/ El país)
O reflexo disso também poderia ser visto no amor, transformado em uma versão líquida. Duas seriam suas características principais, de acordo com o sociólogo polonês: 1. esse amor é doce e intenso; 2. tem curta duração.
Utilizando-se da metáfora do “amor de bolso”, Bauman reforça a ideia de que esse sentimento líquido pressupõe sobriedade no investimento emocional. Ou seja, quanto menor o envolvimento, menos o risco de sofrer por esse amor.
Essas reflexões nos conduzem ao que o sociólogo polonês define como amor a partir do padrão dos bens de consumo. Tal qual uma commodity, este sentimento, na sociedade capitalista, teria sido convertido em uma mercadoria.
“SÓ RI DAS CICATRIZES QUEM NUNCA FOI FERIDO”
Vai lá Romeu, caminhando de volta para a casa de Julieta, depois de ele e seus amigos terem sido gentilmente convidados a se retirar.
Enquanto monologa seus “ais”, seus amigos zombam de sua melancolia apaixonada.
A essa altura, o jovem Montéquio solta uma máxima até hoje verdadeira: “Só ri das cicatrizes quem ferida nunca sofreu no corpo”.
E me pergunto: e se ninguém se ferisse, quem iria chorar? E mais: e se a própria ideia de amor fosse mutável, e representasse algo novo hoje?
Levanto o questionamento a partir de algumas reflexões presentes no texto da antropóloga Sheila Santos, “Meu Tinder tá bombando!” Geolocalização, sociabilidade e vivências da sexualidade.
Segundo a pesquisadora, as práticas de sedução e relacionamento não são únicas e imutáveis. Pelo contrário. Cada geração, ao longo da história, criou seus mecanismos de paquera de acordo com os valores culturais de sua época.
Do namoro na porta de casa ao flerte na saída da missa na Igreja; do passeio pelo parque em busca de um namorico aos apps de namoro contemporâneos. Todos estes exemplos são estratégias de paquera típicas de cada momento histórico.
O que separa a praça onde nossos avós trocavam olhares e paqueravam e um app de namoro? O tempo e o espaço, mas o objetivo segue sendo o flerte, a sedução, o desejo… Ainda que os aplicativos sigam uma lógica diferente. Quem os usa busca um amor pra vida inteira? Pouco provável, mas não impossível. Os usa para prazer? Muito provável, mas não necessariamente.
Ainda de acordo com a antropóloga Sheila Santos, o aplicativo de relacionamento é aquilo que o usuário faz dele. Ao longo de sua pesquisa, Santos pôde acompanhar uma série de narrativas de pessoas que tiveram experiências múltiplas com estes apps, do amor duradouro à pegação passageira.
E aí chegamos a uma reflexão profunda e necessária: o que é amar para a geração pós-revolução digital?
Quando Bauman reflete sobre a liquidez dos relacionamentos, ele parte de sua experiência pessoal, sendo um homem do início do século XX.
A problemática está justamente em como uma geração nativa-digital, acostumada às amizades via apps (instagram, facebook, twitter, tiktok) entende o que é (e se quer) um relacionamento duradouro.
Por exemplo, uma nova tendência entre os jovens surgiu com o objetivo de desfazer a confusão e os mal-entendidos que costumam acompanhar a busca de encontros. Seu nome em inglês é hardballing ("jogar pesado", em português) e designa um enfoque mais sensato sobre os encontros amorosos. A ideia principal é: seja sincero e explique logo de cara suas intenções e expectativas - antes até do primeiro encontro.
Um outro exemplo: uma pesquisa, desenvolvida por Kyung Mi Lee, estudante da Universidade Yale, dos Estados Unidos, que envolveu 500 participantes do Reino Unido e dos EUA (em sua maioria, da geração Z e millennials, com alguns participantes da geração X incluídos "para comparação") concluiu que apenas um em cada 10 integrantes da geração Z afirma ter "decidido firmar compromisso".
Se os espaços de convivência mudaram, uma nova conduta também nasceu daí. E, não somente isso, mas, também, uma nova forma de paquerar, ficar, apaixonar, amar e (des)apegar a partir das ferramentas tecnológicas.
Há amor na Era dos Dados, mas não espere encontrar Romeus e Julietas por aí.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.