O caminho do guerreiro e as lições que ficam
Quando criança, eu era daqueles que dava bom dia pra estranho, abraçava árvores e corria atrás de borboleta. Era daqueles que tinha bochechas de sobra, boas de apertar, devido aos quilos extras por viver mais em casa lendo e jogando videogame do que na rua jogando bola. Cresci em bairros violentos o bastante para fazer meus pais serem superprotetores.
Isso fez de mim um nerd. Daqueles que geralmente termina enfiado dentro de uma lata de lixo em filmes ruins americanos. Bullying? Nunca ouvi falar. Mas lembro bem dos nomes que eu recebia, dos dedos apontados, do esforço que era ir pra escola e ter que viver no meio de um monte de gente "mais legal" e "mais agressiva" que eu.
Perdi a conta de quantas vezes voltei pra casa tremendo de raiva e punho cerrado, depois de ter sido feito de estrela no holofote para que todos na plateia rissem de mim. Seja porque tinha algum palavrão colado nas costas, porque minha cueca tinha sido puxada e presa na cabeça ou até mesmo porque alguém tinha me chutado e derrubado no meio do intervalo.
Resolvi que era uma boa ideia tentar ser mais parecido com os heróis que eu admirava.
Resolvi que era hora de aprender a lutar.
Comecei com Judô. E logo senti falta de lutar em pé. Eu queria saber chutar e socar a fuça daqueles que riam de mim. Então veio o Tae kwon do. Giros demais. Pouco prático. E o dinheiro começou a fazer diferença. Pela primeira vez vi um conflito que nunca aparecia nas histórias que eu lia: o mestre cobrando o pagamento do aluno. O mais puro suco da realidade.
Depois de alguns pagamentos atrasados e da decepção com os treinos, lá fomos nós buscar um novo lugar, talvez mais interessante e onde eu não me sentisse envergonhado por ser o cara que sempre atrasava o pagamento.
E o próximo alvo foi o Kung Fu Táng Láng. Todo o poder do louva-deus. O frágil inseto que se torna um dos mais vorazes predadores. Poético, não é? Até as prestações atrasarem. De novo. E as cobranças começaram. Era extremamente desconfortável sentir que eu não podia estar num lugar, e ainda assim, querer mais que tudo continuar lá. Com o passar do tempo e sem grandes mudanças na situação, a vergonha me nocauteou mais uma vez, e lá se foi mais uma arte marcial.
(imagem - Tim Foster via Unsplash)
A próxima foi de graça! Capoeira na igreja evangélica. Mas né? Nunca ouvi falar de grandes guerreiros cristaos. Principalmente com tradição numa arte marcial de raízes africanas. Então, óbvio que não durou muito. Era de graça, mas nas letras miúdas eles queriam meu dízimo e minha alma.
Minha última tentativa frustrada foi com o Ninjutsu. Eu estava aprendendo a sumir nas sombras. Escalar paredes. Transformar meu corpo em tronco de árvores. Até bonsai eu plantei. Mas minha especialidade ainda era fazer pagamentos ficarem invisíveis. E dessa vez eu até me sentia em casa! Tanto que não aguentei esperar a situação piorar e parei antes de milhares de cheques se acumularem, mesmo nunca me perdoando por ter perdido essa oportunidade.
Depois disso, foi um grande hiato até que eu pudesse pagar por tudo sozinho. Já não era mais criança quando isso aconteceu, e então eu estava determinado a aprender a socar e chutar a cara de alguém. Então conheci o Muay Thai. E foi amor à primeira vista. Ou a primeira joelhada. Como preferir.Dessa vez os pagamentos não atrasaram. O que me impedia de me sentir totalmente em casa era perceber que ninguém mais ali tinha o mesmo comprometimento que eu. Ninguém mais ali queria se tornar uma máquina de matar. Um monstro da guerra. Quando muito, queriam suar e perder uns quilos. Dava preguiça só de olhar.
Na ânsia de achar algo com mais significado e talvez mais comprometimento, iniciei no Jiu Jitsu. Sem parar o Muay Thai. Entendi completamente porque o Brasil revolucionou o mundo quando entrou em contato com os conceitos japoneses. Nossa ginga e forma de ver o mundo foram fundamentais para elevar o nível do "xadrez humano". A paixão ai também me pegou forte.
Comprometimento no Jiu Jitsu até tinha. Até mais que no Muay Thai. Vários alunos mais experientes. Pessoas treinando mais forte. Era bem legal. Mas vieram junto os estereótipos do Bad Boy. O "machão esperto''. O cara que faz fiu fiu pra moça na rua, daqueles que dão ânsia de vômito. Então, de novo, tinha emoção, mas eu jamais chamaria de casa um lugar que tivesse os mesmos meninos que me infernizaram quando eu era criança.
A vida andou. O Bonsai que eu plantei já estava quase dando os primeiros frutos. E eu já não treinava mais com a mesma frequência. O trabalho não deixava. O tempo era pouco. E outras lutas agora faziam mais sentido. A política.
Como sempre, muda-se a arte, mantém-se os problemas. Novamente, era muito difícil achar um lugar onde eu me sentisse em casa. Partidos, movimentos, coletivos. Ao menos dessa vez os pagamentos não eram problemas. Só as opiniões mesmo. Ou a superficialidade delas. Ou a falta de ação prática na hora de resolver problemas e ajudar quem precisava.
Até que um dia, recebi um convite pra mais um movimento social. Dessa vez bem pertinho de onde eu cresci. Na favela da Vila Prudente. A região me interessou muito, afinal, sempre ouvi sobre a ideia de "devolver pra comunidade". Dá pra ser mais literal que isso?
Enfim, eu que sempre fui de tentar coisas novas, não ia deixar essa passar.
E foi assim que conheci o Projeto Função. Projeto social encabeçado por dois caras malucos. Um que vinha lá da zona norte para fazer agitação cultural e mudar algumas vidas lá na zona leste. Outro que sedia a própria casa na favela para seus vizinhos usarem como sala de aula. E fornecia até cafezinho e pão de queijo. Sem cobrar um vintém sequer. Vai entender essa gente…
Logo na primeira reunião, algo me chamou muita atenção. A casa era simples, mas sempre aberta. E bota aberta nisso! Era um entra e sai constante de gente.
E sobrava café, pão de queijo e sorriso do anfitrião, pra todo mundo que passava ali.
Esse era o Mestre Edu. Mestre Miyagi para todos os íntimos da região e os amigos.
Porque Miyagi?
Opa. Quase ia me esquecendo. Nas horas vagas, o Mestre Edu transformava sua casa também em um,veja só, dojo de artes marciais. E lá se ensinava o karate da melhor qualidade.
Meus olhos se cegavam com o brilho da aura que envolvia o guerreiro gigante de 60 e tantos anos e não mais que um metro e sessenta. Envergava sempre um kimono limpo e bem passado, como manda a disciplina. E tomava sempre a frente dos alunos com firmeza nos movimentos, mas leveza na voz. Sonhar acordado nunca foi tão literal pra mim.
Tudo era bom demais. O engajamento, a ação, a solidariedade. Tudo ali combinado e coroado com uma pitada do meu hobby favorito.
Era muito legal chegar pra dar aula, palestra, ou ajudar em alguma atividade e ver as crianças treinando com o Mestre na entrada. De maneira improvisada, fazia-se caber quase uns 15 alunos ali, se todo mundo prestasse atenção onde chutava direitinho.
E depois de tantas indas e vindas nos becos da favela mais antiga da cidade de São Paulo, veio o convite que aqueceu o coração: "ah, você luta, é? Quer treinar comigo? Aparece aí com roupa folgada".
(Imagem - Diogo Nunes @dialex via Unsplash)
E foi assim, com essas palavras simples e diretas que, depois de muitos anos, eu tentei mais uma arte marcial diferente: o Karate wado-kai do Mestre Edu.
Não era a mais feroz. Não era tão soco, chute e joelhada na cara quanto o Muay Thai. Não tinha o glamour do Jiu Jitsu. Mas tinha o calor de um lar aquecendo o coração que eu nunca tinha sentido em outro lugar. As crianças treinando com os adultos. As pessoas se ajudando, trabalhando juntas para montar, desmontar e conservar a área de treino.
As histórias de cada um ali, desde as irmãs que vinham de Heliópolis, ao João, pedreiro gente boníssima que saia do trabalho e corria pra casa do mestre para praticar aos sábados. Só gente boa, cada um treinando do seu jeito, com intensidade diferente, mas com muita dedicação.
Ouço até hoje sempre que me alongo a voz do Mestre Edu mandando começar pelos pés, tornozelos, subir pelas coxas e terminar com soquinhos nas costas pra soltar a musculatura. E claro, depois do treino e do alongamento final, "o pulinho do novinho" pra levantar, saindo do chão e ficando de pé sem usar as mãos para apoiar o corpo. Pura diversão para karatecas de todas as idades.
Fora isso, as inúmeras histórias que só temperavam ainda mais aquilo que já era bom. As pessoas que o Mestre resgatou do tráfico. Os campeonatos em que ele participou. Os cursos que ele frequentava, tanto como aluno quanto como convidado para compartilhar sua experiência. Um Mestre nato no sentido mais amplo da palavra.
As minhas idas e vindas no Função e na favela foram muitas. Dentro e fora do Projeto. Seja convivendo com o pessoal da igreja, ajudando em outras ações, ou só pra ir na quermesse da vila mesmo.
Até que como se fossem cheques sem fundo, a desilusão política com o país e o medo de criar um filho que acabava de chegar me fizeram abandonar não só mais um lugar de treino, mas dessa vez o país.
10.000 km de distância entre meu novo endereço e o único lugar que meu corpo e mente já chamaram de casa enquanto o suor escorria pela testa.
Aqui nessa terra distante e gelada, recomecei a procura. Academias, "fighting clubs", associações esportivas. Ate uma escola de BJJ, a forma como gringo chama Jiu Jitsu, brasileira de verdade eu achei.
Mas casa? Daquele jeito, improvável. Difícil. Muito difícil. Agora impossível.
Junto com essas sensações, sempre vem os questionamentos: será que fiz certo? Vale a pena ficar tão longe de todo mundo assim? Amigos, família, tudo?
A resposta pra tudo isso eu ainda não sei.
O que eu sei é que eu nunca mais vou poder chamar o dojo do Mestre Edu de casa.
Hoje eu descobri que ele não está mais lá.
Partiu nesse dia para outro lugar para ensinar e ajudar pessoas de outras maneiras.
Na partida me deixou uma pergunta e mais uma lição. Coisa de mestre, sabe? Ensina a todo tempo. Sempre que pode.
Me disse: "Lee, o que você tem feito pela sua comunidade? Só porque mudou e tá tão longe não precisa ajudar mais ninguém? Não foi assim que te ensinei."
A resposta desce seca e amarga pela minha garganta, envolta num bolo de silêncio solitário e sepulcral.
Mural na Favela da Vila Prudente em homenagem ao Mestre Edu. (Imagem - Flávio Lee Budoia)
E a lição?
Se valeu a pena mudar, talvez eu não saiba agora. Talvez eu aprenda e descubra lá na frente. Mas agora de uma coisa eu sei.
Se você tem algo a dizer a alguém, diga.
Se você tem algo a agradecer, agradeça.
E seja claro. Se faça entender.
Deixe clara sua admiração e a importância que as pessoas têm na sua vida enquanto estiverem aqui. É aí que elas vão precisar. É enquanto estamos vivos que precisamos ser reconhecidos pelas nossas ações.
Porque ao dizer "obrigado mestre" quando o dojo está vazio não estamos agradecendo de verdade. Estamos apenas mitigando a saudade que agora nunca será curada.
Vá em paz e obrigado Mestre Edu, pelos tantos cafés, ensinamentos e a sabedoria compartilhada.
Oss
(Imagem da capa - Flavio Lee Budoia)
Este artigo foi escrito por Flavio Lee Budoia e publicado originalmente em Prensa.li.