O Carpinteiro do Universo
Me furam na fila do ônibus, quando irremediavelmente discuto com minha angústia o por que de tão desgostoso com o mundo. Perdido olhando a tela do celular. No meio dessa discussão, ao olhar periférico, ele dá uma miséria de passo a frente. Quase num andar de qualquer sacerdote de qualquer seita em direção ao altar em qualquer rito de extrema importância. E num mugido grave, ele diz: “Aí, parceiro, eu tô na fila, valeu?”. Olhei-o a meia distância, com os olhos por cima dos óculos. Levei um segundo inteiro, estático, olhando para ele com a mesma expressão, só para que talvez, numa sorte tremenda, ele perceba que eu percebi seu ato, e disse:
— Claro.
Não dá. Nessas horas sou acometido por uma síndrome, um complexo que apetece em momentos nem sempre oportunos, pois nem sempre se merece. É a Síndrome de Carpinteiro do Universo. Sem, necessariamente, contraindicações, ela não adentrou ainda os grandes círculos acadêmicos da psicanálise. Para quê tentar entender se não prescreveremos um remédio?
Acontece que: no longo segundo em que o olhava antes de responder à mania dessa síndrome perigosa, recordei uma linha de diálogo que estava ouvindo, mas que ia passando despercebida até o sumo sacerdote estender seu pontifício passo rumo ao altar da vaga número 36, do ônibus, ao invés de 37. Ele estava acompanhado de uma moça, muito bem-apessoada - os dois inclusive, legítimos cidadãos de bem. E no meio da conversa, colados ao meu lado, eles versam sobre o ônibus estar relativamente cheio e reclamam do tamanho da fila a entrar.
Temendo não poderem dividir o mesmo banco a fim de continuar deliciosa prosa, o rapaz, com a melhor das boas intenções, decide aproveitar meu momento de devaneio, de leve distração. Ao que eu, também com a melhor das intenções, interpreto e faço vista grossa, sumariamente atacado por minha capciosa síndrome.
“Esse desbarato eu não levo”, pensei, evocando padre Antônio Vieira, “alguém lá em cima há de estar vendo tudo isso aqui!”. Portanto vão, meus ardilosos filhos, que a prosa renda maravilhosos nirvanas regados a subtextos maliciosos!
Subo o primeiro degrau pensando no porque ainda leio jornal. Não compreendo essa pulsão por auto sabotagem via leitura de penosas linhas diariamente. Fico folheando à procura de alguma coluna, crônica, palavra de alguém que não se prendeu ao escrutínio da última votação do projeto de lei do congresso que aperta o orçamento no que realmente importa, em nome do que se diz que importa, sem que importe de nada. Ou do último crime cuja crueldade causaria inveja ao mais fervoroso inquisidor.
Sigo sozinho com as manchetes realmente importantes. Só um louco gastaria as páginas de um jornalão falando do passarinho que apareceu em sua janela.
Dentro do ônibus, ao passar a roleta, vejo logo na primeira fila os dois fervorosos colegas - separados pelo vão o qual passo sem conseguir deixar de rir pelo esforço frustrado. Síndrome de Carpinteiro do Universo não impede certos prazeres nada filantrópicos.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.