O céu está caindo
O único temor dos irredutíveis gauleses do tempo de Asterix é que o céu caia sobre suas cabeças; muitos séculos mais tarde, na época das Grandes Navegações, os marujos preocupavam-se com monstros marinhos e tempestades que tiravam suas naus da rota e as faziam soçobrar, devoradas por mares bravios.
Eis que tantos outros séculos após, onde tempestades já são contornadas com mais segurança, e certamente ninguém mais teme que a abóbada celeste venha a colapsar, parte destes temores foram revividos, de modo bastante literal.
No espaço tem espaço para todos
O oceano deixou de ser o limite. Elon Musk, proprietário da Tesla, principal marca mundial de veículos elétricos e autônomos, e da Space X, que deverá possibilitar à humanidade fincar um pé em Marte com suas fascinantes Starship, resolveu criar um sistema de internet em alta velocidade com abrangência global.
Para isso, criou um serviço chamado Starlink. Não contente em ser o operador da rede, passou a construir e enviar para o espaço diminutos satélites que irão criar essa web orbital.
E não falamos de um, dois ou dez satélites. A bordo dos robustos foguetes reutilizáveis Falcon (não, a Millenium Falcon não tem nada a ver com isso), da Space X, sobem pequenos “enxames” satelitais: 40 a 60 satélites são despejados na órbita a cada lançamento, num desfile estelar que é visto a olho nu nas noites terrestres.
Data atual, março de 2022, aproximadamente 2 mil satélites Starlink orbitam o planeta. Dentro de três ou quatro anos, a meta – ambiciosa – é chegar em 12 mil. Desta feita, toda a Terra estará coberta.
Plano quase perfeito
Toda? Bem, talvez não… em 3 de fevereiro de 2022, um dos Falcon soltou uma “ninhada” modesta de satélites: 49, no total. Realizando seu balé espacial, cada um atingiu sua posição orbital programada e aguardava o momento de entrar definitivamente em operação.
Foi quando algo inesperado aconteceu. Um evento digno dos quadrinhos dos X-Men, um episódio de Star Wars ou um filme de Bond. James Bond.
Nada menos que 40 dos 49 satélites foram atingidos por uma misteriosa energia e simplesmente saíram descontrolados de suas órbitas. Não foi uma rajada da Estrela da Morte, nenhum pulso enviado pela arma secreta de um magnata soviético, tampouco coisa do Magneto, embora essa seja a hipótese mais aproximada.
Uma tempestade magnética, originada de explosões solares, danificou os sistemas destes equipamentos recém-lançados. Seus sinais de comunicação se perderam, e sua manobrabilidade foi atingida em cheio.
Quarenta destes satélites, estruturas complexas e quase autônomas, cada uma com cerca de 250 quilos, passaram a rodopiar descontroladas, correndo o risco de atingir seus “vizinhos”, além de satélites maiores e outros artefatos. Logo foram atraídos pelo campo gravitacional de nosso planeta, naufragando no firmamento.
Prejuízo que caiu do céu
Quarenta bolas de fogo despencando em alta velocidade, riscando a noite em rastros luminosos, desintegrando-se e desaparecendo para sempre, consumidos pelo calor da reentrada.
A Starlink precisou arcar com um prejuízo milionário; mas não foi o primeiro satélite do “enxame” a despencar, e possivelmente não será o último. Mas foi uma ocasião ímpar: nunca tantos haviam caído em tão pouco tempo.
O problema não foi maior pois cada um destes pequenos satélites é construído pensando na probabilidade de erro: são feitos para se autodestruir num caso desses. Automaticamente, iniciam processo de queda em direção à atmosfera terrestre. Houve relatos nas três Américas. No Brasil, moradores do Estado do Maranhão produziram dezenas de imagens.
Há mais mistérios entre o céu e a Terra
Distúrbios causados pela flutuação solar são nossos velhos conhecidos. O mais simples deles é recorrente, acontecendo anualmente nos meses de março e setembro. É a chamada interferência solar.
Nestes dois períodos, geralmente numa faixa da manhã e outra da tarde, o sol passa por trás dos satélites de comunicação, causando a degradação dos sinais, a perda de qualidade de áudio e vídeo, e o desespero dos coordenadores de emissoras de TV em todo o planeta.
Transmissões em rede ficam momentaneamente às cegas, obrigando emissoras locais a improvisar soluções regionais ou quando possível rebatendo para satélites em posições orbitais diferentes até que o fenômeno cesse.
Já a tempestade geomagnética, que derrubou os 40 Starlink, é uma ocorrência bem menos frequente. Nestas ocasiões, a atmosfera se aquece e a densidade atmosférica aumenta, avariando a estabilidade orbital do equipamento. Desta vez em particular, o atrito com o ar chegou ao nível altíssimo de 50%.
Aurora equatorial
Grandes problemas causados pelas tempestades geomagnéticas não são comuns, mas dois eventos entraram particularmente para a História. Em 1859, uma destas enlouqueceu bússolas em todo o planeta, gerando o caos na navegação e em rotas terrestres.
A distorção magnética foi tão brutal que a aurora boreal, via de regra restrita a países do extremo norte, mais próximos do Círculo Ártico, foi vista da zona equatorial. Os colombianos acompanharam o belo espetáculo celeste.
Mais de cem anos depois, em 1989, o nordeste canadense teve suas instalações elétricas atacadas por uma destas tempestades. O resultado: quase dez horas sem energia nas cidades desta região.
Em nota, a Starlink diz esperar que estes eventos não ocorram, mas não descartam a possibilidade que seus satélites sejam afetados. Afinal, a atividade solar anda bem agitada nos últimos tempos.
Mais do que esperar e torcer, os cientistas e técnicos da empresa devem procurar maneiras de defender o “enxame” deste fenômeno com a maior destreza possível: os planos de assinatura do provedor já são comercializados em escala global, não são exatamente baratos e qualquer abalo na confiança pode provocar um fenômeno ainda pior: a queda de assinantes.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.