O curioso caso do brasileiro médio
2022 promete não ser um ano fácil. Estaremos em mais um pleito eleitoral para boa parte dos cargos eletivos nos Estados e na Federação, mas, creio eu, a disputa presidencial será um embate ainda mais conturbado.
As feridas de 2018 ainda não cicatrizaram. A eleição do atual presidente, marcada pelo uso de boatos e mentiras (fake news tornou-se um eufemismo ridículo), produziu um efeito avassalador sobre o próprio fazer político.
De uma hora para outra, o brasileiro médio descobriu-se entendedor de política, conservador e de direita. Muito além de uma mera coincidência, a mobilização de pessoas dentro deste padrão foi uma estratégia calculada. Com estes personagens, setores como o empresariado e os militares puderam ser mobilizados em favor de um candidato que se apresentava como antipolítico, anti-establishment e defensor da anticorrupção.
Por hora, vamos focar no personagem que chamamos de brasileiro médio. Compreendê-lo pode ser a chave fundamental para conceber o cenário político atual e como ele pode ter papel decisivo no fim das contas.
Um animal entre o riso e a política
No Livro IX da "Ética a Nicômaco", Aristóteles diz “que o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade”. Este filósofo, fundador do Liceu, entendia o ser humano como biológico e político (social), surgindo daí o conceito bios politikós, ou “vida política”.
O interessante é que esse mesmo Aristóteles afirmava que o ser humano é, também, o único animal que ri.
Rindo ou não, é inegável que a preocupação com os destinos da pólis permeava o dia a dia dos cidadãos, como eram chamados aqueles que participavam dos debates na Ágora.
Fazer parte da coisa pública era algo importante para os gregos. Tanto que aquele que não gostava ou se interessava pela coisa pública era chamado de idiotes.
Cena do filme “Débi e Lóide” (Imagem/reprodução: New Line Cinema, 1994)
O sentido primitivo de idiotes era o de “homem privado”, isto é, metido com seus próprios afazeres, afastado da gestão da coisa pública. Na sociedade grega da época, isso era o mesmo que dizer “pessoa sem instrução”.
Claro que estamos tratando aqui de uma sociedade extremamente desigual, elitizada e escravista, onde nem todo mundo tinha condição de participar da política (ser cidadão era um privilégio de poucos em Atenas, por exemplo).
Mas, ainda assim, é válida a provocação: e quando o idiotes resolve tomar partido da coisa pública?
Quem é o brasileiro médio?
(Imagem/reprodução: Moneytimes)
A resposta para esta pergunta é fundamental para compreender os rumos políticos do país. Contudo, não espere uma resposta pronta e acabada, objetiva e sem rodeios. Definir este personagem é algo complexo.
Vamos, neste desafio, cruzar algumas informações.
Nas últimas eleições, em 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgou um balanço com dados referentes ao perfil do eleitor médio brasileiro. Naquela ocasião, 147.918.483 eleitores foram às urnas.
A maioria do eleitorado era formada por mulheres (52,49%), somando 77.649.569. Os homens correspondiam a 47,48% do total, somando 70.228.457 eleitores. A maior parte estava na faixa etária de 35 a 59 anos.
A maior parte do eleitorado brasileiro informou ter o ensino médio completo: 37.681.635 (25,47%). Apenas 10,68% do eleitorado brasileiro, ou seja, 15.800.520 concluíram a graduação superior.
Outros 35.771.791 eleitores (24,18%) disseram ter o ensino fundamental incompleto e 22.900.434 (15,48%) possuíam o ensino médio também incompleto.
Vamos a outra fonte, baseada na pesquisa do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação aplicada entre os dias 20 e 27 de abril (2031 entrevistas, margem de erro 2,2%), denominada "A Cara da Democracia".
A amostra representou a população eleitoral brasileira de 16 anos ou mais, de ambos os sexos, distribuída proporcionalmente à população eleitoral existente em cada uma das cinco regiões do Brasil: Norte, Centro-Oeste, Sudeste, Nordeste e Sul.
De acordo com os dados coletados, 50,6% dos brasileiros afirmavam ser favoráveis a um golpe de estado em uma situação de muita corrupção.
E mais: 22,2% dos brasileiros acreditavam que a terra é plana; 50,7% acreditavam que o coronavírus foi criado pelo governo chinês; e 56,4% acreditavam que os hospitais foram pagos para aumentar o número de pacientes mortos pela Covid-19.
O pesquisador responsável pelo estudo, Leonardo Avritzer, professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e coordenador do INCT - Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, levanta a ideia de que estes dados expressariam um quadro de desinformação social.
Ou seja, recorrendo cada vez mais a informações desencontradas nas mídias sociais (Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, etc.), os brasileiros se posicionariam politicamente com um nível baixíssimo de informação.
Isso se coaduna com dados da pesquisa da empresa de cibersegurança Kaspersky. Nela, foram entrevistadas 2358 pessoas entre 25 e 65 anos de idade. A amostra foi distribuída em proporções semelhantes entre homens e mulheres e entre grupos etários (20 a 35 anos, 36 a 50 anos e 51 a 65 anos).
Como resultado, a pesquisa revelou que mais de 70% dos brasileiros (a maioria mulheres) usou as redes sociais como fonte de informação.
A partir deste cenário, minha interpretação é a seguinte: o brasileiro médio, identificado como homem ou mulher, tem em torno de 20 a 59 anos, com uma escolaridade que gravita entre o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, e é propenso a acreditar em informações veiculadas em mídias sociais, especialmente Whatsapp, Facebook e Instagram.
Como o brasileiro médio decide as eleições
Em 2018, decidiu com o fígado (Imagem/reprodução: Canaltech)
Como fazer um prognóstico sobre 2022? Sem bola de cristal ou qualquer poder sobrenatural de visão do futuro, resta-nos olhar para o passado recente e interpretá-lo.
O pleito eleitoral de 2018 foi intenso e desgastante, mas algumas lições puderam ser tiradas:
1. A grande mídia não é mais capaz de definir um campeão. Ao menos, não como antigamente. Se a Rede Globo trabalhou com esmero a imagem de Collor no 2o turno de 1989, ou mesmo poliu e lustrou o personagem FHC como um intocável e incorruptível, o mesmo não pôde ser feito com Geraldo Alckmin, o candidato do sistema empresarial/midiático em 2018. Sua derrota foi fragorosa e vexatória.
2. O Whatsapp e seu irmão Telegram foram, são e serão armas perigosas de direcionamento da opinião pública e criação de narrativas para o brasileiro médio. Da “mamadeira de piroca” ao “kit gay”, as hostes bolsonaristas alimentaram um sem número de desinformações que potencializaram o conservadorismo contra um inimigo invisível (e inexistente!).
3. O brasileiro médio ainda vota com o bolso, o estômago e o coração. A balança econômica é ainda um termômetro importante para compreender a intenção de voto. Basta lembrar de como o Auxílio Brasil fez, de tempos em tempos, a aprovação do atual presidente subir e descer.
O estômago, claro, também é ponto sensível na escolha eleitoral. Pratos vazios podem ser determinantes para um candidato, e a crise durante o segundo mandato de Dilma Roussef, seguida pelas reformas desumanas do governo Michel Temer, reduziram e muito o carrinho de compras do brasileiro médio.
Mas, sem dúvida, o coração pode ser o ponto chave disso tudo. Não se trata de amor, mas de paixões (ou, se preferir, convicções). Diante de qualquer argumento desabonador, em 2018, sobre Bolsonaro, a resposta final de seu eleitorado oscilava entre o “é melhor Jair se acostumando” ou “Bolsonaro é pela família cristã e pelos bons costumes”.
2022 pode repetir 2018, mas, também, pode ser diferente.
Os mecanismos da justiça aprenderam minimamente a lidar com a mangueira de mentiras dos aplicativos de mensagem, e parte da imprensa passou a checar fatos em iniciativas jornalísticas louváveis.
O que esperar, então?
Apertem os cintos, ajustem seus capacetes e aqueçam seus motores. As eleições vêm aí.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.