O dragão da inflação contra o povo guerreiro
Por conta disso, do alto do castelo onde estava trancafiado e controlado há alguns anos, o dragão da inflação se soltou. No recorte dos últimos 12 meses, a taxa inflacionária já ultrapassou os dois dígitos, computando 10,25%, número medido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Como em diversas outras ocasiões durante o atual governo, este fato nos faz entrar numa espécie de túnel do tempo. Desta vez, fomos direto a 1994, no início do Plano Real, último ano em que o IPCA marcou dois dígitos na inflação.
O DIA EM QUE PERDI 1 REAL
Nos idos anos 90, apostei uma nota de 1 real numa brincadeira com colegas de escola. Era algo simples, no parquinho do lugar onde estudávamos. Quem pulasse mais longe, do topo do escorrega, ganharia a “bolada”. Como os brinquedos estavam na parte de areia, a marca do tombo serviria de parâmetro.
Lembro que pulei de olhos fechados, apertando os punhos. Eu fazia isso sempre que sentia medo. Caí de bunda, doeu pra caramba e, abrindo os olhos, vi que eu estava longe demais da marca do vencedor.
Voltei pra casa triste e sem o tal real.
Chegando em casa, meus pais quase arrancaram os cabelos por saberem que eu não tinha mais aquela cédula. Eu não fazia a mínima ideia do porquê de aquilo ser tão importante. Eu tinha 6 anos, e havia aprendido na escola que 1 (um) era uma unidade, um bloquinho de montar daqueles objetos educativos de matemática, que a professora montava e desmontava.
Em 1994, contudo, um real estava longe de ser apenas um mero número.
O DRAGÃO DA INFLAÇÃO
Propaganda típica do Regime Ditatorial: progresso, desenvolvimento e crescimento.
Outra viagem no tempo, agora para os anos de chumbo.
O famigerado “Milagre Econômico”, proporcionado pelos governos ditatoriais, na verdade foi um período de números inflados por empréstimos exorbitantes, obras faraônicas e muita corrupção. Em termos gerais, esse “milagre” compreendeu o período do governo Médici (1969 - 1974), cujo ministro da Fazenda fora Delfim Netto.
Paradoxalmente, estes anos tiveram uma explosão do PIB de 9,8% em 1968 para 14% em 1973, enquanto a inflação caiu de 19,46% em 1968, para 15,6% em 1973. O problema é que isso não correspondia com o crescimento real da economia, que permaneceu dependente de empréstimos e injeções financeiras estrangeiras para mascarar sua desigualdade social e fragilidade econômica.
O resultado disso foi a hiperinflação dos anos 80. Mas, aí, os militares entregaram o problema nas mãos dos civis, e no processo de redemocratização os governos eleitos pelo voto popular tiveram de lidar com a herança inflacionada deixada pelo regime ditatorial.
No ano em que perdi um real (1994), a inflação acumulada era de absurdos 1.093,8%.
Meus pais assinavam a ISTOÉ e eu gostava de ver as charges finais de cada edição. Geralmente, um dragão enorme segurava sacos de dinheiro ou cuspia fogo sobre pilhas de moedas.
Na época, eles ficaram malucos por causa daquele real. Pudera, aquela nota custava 2.750,00 cruzeiros!
OS PLANOS: ENTRE O FRACASSO E O TRIUNFO
Os governos democráticos penaram para controlar a hiperinflação deixada pelo desastre econômico dos militares.
Entre Sarney e Itamar Franco, tendo no meio um Fernando Collor de Melo, diversos planos foram estabelecidos e fracassaram.
Durante o governo Sarney foram 4 planos econômicos: Plano Cruzado I e II em 1986, Plano Bresser em 1987 e Plano Verão em 1989. Foi o tempo em que os preços alimentícios mudavam diariamente nos supermercados, e a população foi convocada a ser “fiscal” desses valores.
O fracasso foi retumbante.
O Plano Collor, na primeira fase (1990), congelou e confiscou o dinheiro de brasileiros em poupanças e contas-correntes; em sua segunda fase (1991), congelou salários e preços de alimentos, além de aumentar a taxa de juros.
O choque rendeu alguns resultados positivos, mas foram efêmeros. Logo o caos econômico voltou a se instalar.
Foi nesse contexto que o Plano Real teve seu lançamento em 1994, por medida provisória do então presidente da República, Itamar Franco. Ele foi desenvolvido por um time de economistas bem conhecidos como Pérsio Arida, Edmar Bacha, André Lara Resende, Gustavo Franco e Pedro Malan.
A solidez do projeto, que aliava compromisso fiscal e organização econômica, deu luz a uma moeda forte, que deu poder aquisitivo à população e garantiu que a roda da economia brasileira girasse apropriadamente.
O POVO GUERREIRO
De 1994 pra cá, muita coisa aconteceu, mas a estabilidade econômica deu a tônica do crescimento brasileiro, ainda que isso não signifique de forma alguma que passamos a viver nestas duas décadas um mar calmo.
Contudo, o desastre econômico do governo Bolsonaro/Guedes acende o alerta vermelho: na escalada da inflação, podemos estar diante de uma profunda crise que pode abalar mesmo a nossa moeda.
Enquanto isso, a classe trabalhadora vai às compras e cada vez mais volta com pouco ou quase nada pra casa. Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a cesta básica em média já ultrapassou os R$700. Com o salário mínimo minguando em R$1.100, comer no Brasil também se tornou um privilégio.
O efeito disso é monstruoso. Basta olhar para as ruas. Recentemente, um pai desesperado foi a um condomínio implorar por comida em Brasília/DF. O vídeo circulou em diversos meios de comunicação.
A moeda desvaloriza, os preços sobem e o salário, pelo contrário, perde poder em face da inflação. Aquele R$ 1 que perdi na brincadeira, em 1994, equivaleria hoje a cerca de R$ 0,15.
A batalha contra o Dragão da inflação parece ainda ter muitos capítulos pela frente, e o povo, guerreiro, possui poucas armas para combater esse monstro
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.