O drama dos imigrantes na fuga da Ucrânia
Pai segura sua filha enquanto espera uma oportunidade para entrar num trem (Foto: Agência Reuters)
Sob todas as perspectivas possíveis, do analista mais simpático à Otan até aquele pró-Rússia, há um claro consenso de que a vítima de todo esse conflito é a população que vive na Ucrânia.
Entre tiros, bombas e avanços de tanques, entre a poeira dos estilhaços do que outrora eram prédios, escolas e casas, os civis tentam tatear um meio de sobreviver ao iminente desastre humanitário que se avizinha no país.
Da poltrona da minha sala de estar, posso apenas conjecturar as dores e os horrores de caminhar pelas ruas das principais cidades engolidas pela fumaça dos senhores da guerra. Os vídeos, compartilhados em todo o mundo, ecoam vozes de desespero e medo.
Não há garantias de sobrevivência, as fronteiras se apinham de gente. Em menos de uma semana, o número de pessoas que já deixaram a Ucrânia passou dos 600 mil. Em estimativas da ONU, possivelmente mais 4 milhões fujam do conflito nos próximos dias ou semanas.
E mesmo aí, no epicentro da crise, parece que sempre há espaço para algo pior, desumano e vil. Me refiro ao tratamento desigual dado a negros, imigrantes de países africanos e indianos que vivem no país e que buscam, também, escapar da tragédia.
Refugiados africanos relatam nas redes sociais discriminação na Ucrânia (Imagem/reprodução: internet, via Poder360)
#AfricansinUkrain
O Twitter foi o meio utilizado por um estudante nigeriano que reportou o que via nas estações de trem de Kiev.
Segundo Alexander Somto, era dada prioridade para crianças, mulheres e homens brancos. As vagas restantes (se sobrassem) eram divididas entre os africanos. Numa de suas publicações ele chega a afirmar que empurraram “mulheres africanas para dentro do trem, para que não tivessem a opção a não ser deixá-las entrar”.
Outro imigrante, Dominic Kiarie, publicou um post em que afirmava que pessoas negras, impedidas de entrar no ônibus para a Polônia, eram forçadas a andar por quilômetros.
Este racismo não se resumiu aos imigrantes de países africanos. Também indianos, árabes e sírios residentes no país receberam um tratamento xenófobo por parte das autoridades ucranianas responsáveis pela evacuação do país.
Anatoliy Tkach, encarregado de negócios da embaixada da Ucrânia no Brasil, dá uma outra versão sobre os casos. Em recente entrevista, ele disse que todo o apoio vem sendo dado pelos agentes de fronteira, sem discriminação de cor e sem preconceitos. Anatoliy chegou a dizer, inclusive, que poderia ser uma campanha de desinformação.
Os milhares de vídeos, contudo, são uma resposta mais do que clara para isso.
Militares fazem "barreira" e impedem africanos de entrarem em trens para deixar a Ucrânia
Brasileiros também sofreram com racismo
Nesse meio tempo, acompanhamos também as trajetórias de brasileiros em busca de uma saída da Ucrânia.
O caso de Jonatan Bruno Santiago é um dentre vários. Jogador de Futsal no clube Skyup Kiev, Moreno (como é mais conhecido por lá) foi alvo de comentários xenófobos na tentativa de fuga num trem na segunda-feira, dia 28/02.
Por meio do Twitter também, ele reproduziu uma das falas. Segundo ele, “a mulher que trabalha nos vagões gritou bem alto: ‘pessoas estrangeiras não vão entrar’”.
No dia seguinte, em um carro, ele e mais dois brasileiros conseguiram sair do país.
Xenofobia e alteridade
Tempos de crise são duros e muitas vezes cruéis com as pessoas. Em um estado de guerra, em que a morte é um perigo constante e pode estar esperando na esquina de algum lugar, isso é potencializado em níveis inimagináveis.
No entanto, são estes tempos que provocam uma profunda reflexão na sociedade. Lendo os casos de racismo com os imigrantes de etnias e nacionalidades diferentes (majoritariamente negros), reflito sobre a relação de dois conceitos fundamentais para a relação humana.
A xenofobia, termo que recorrentemente aparece nos noticiários (infelizmente), refere-se a um ódio, um sentimento de hostilidade, uma manifestação de repulsa e ojeriza a alguém. Neste caso, àquele que vem de fora, o diferente de “nós”. De modo geral, o “outro”.
A alteridade, por sua vez, não é um sentimento, mas uma prática. Basicamente, é a atitude de colocar-se no lugar do outro e, deste modo, entender suas angústias, medos e sonhos. Ao mesmo tempo em que se reconhece a diferença entre você e o “outro” (seja cultura, tradição, filosofia, etc.), há a aceitação disso.
Sem alteridade não há democracia, não há cidadania, e arrisco dizer, sequer há sociedade.
Quando foi que perdemos o desejo de praticar o respeito?
Essa pergunta sequer tem resposta. Seguimos acompanhando os noticiários.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.