O Entretenimento nos tempos do Vírus
O assunto é delicado. Podemos ser taxados de pessimistas, mas não soa estranho nas produções atuais da ficção – seja TV, cinema ou quadrinhos – parecer que não há nada fora do normal no planeta?
Parte desta “normalidade” acontece para mantermos um fio de esperança e confiar num futuro retorno ao normal; mas, e se o normal daqui para frente for o tão falado e pouco compreendido novo normal?
Coisas impensáveis há dois anos, como o uso de máscara e a assepsia constante de compras e alimentos em geral (sem falar no próprio corpo) deverão tornar-se tão corriqueiras quanto permanentes. Ao menos, durante um longo prazo. A quarentena de quinze dias, lá no início, soa ridícula nos dias atuais.
Nesse cenário, as produções irão dar continuidade a um mundo que, ao menos por enquanto, não existe mais, ou irão adaptar-se a este nem tão admirável mundo novo?
Nem protagonista escapa
Um caminho ainda incipiente começou a ser trilhado por produções como a longeva série Grey's Anatomy, uma das primeiras a retomar os trabalhos depois do início do isolamento social.
A 17a temporada trouxe a protagonista, Dra. Meredith Grey (interpretada por Ellen Pompeo) contaminada pela Covid-19, com seus colegas dividindo-se para salvá-la ao mesmo tempo em que têm de lidar com as ocorrências diárias do hospital e os avanços dos casos do vírus.
Em entrevista ao Entertainment Weekly, a produtora-executiva Krista Vernoff ponderou: "Não há como ser um programa médico de longa duração e não mostrar a história médica das nossas vidas reais".
Dura realidade
Algo parecido foi mostrado na nacional Sob Pressão, onde o Coronavírus chegou com tudo, bagunçando a vida dos personagens de uma maneira bem realista, abordado com extrema seriedade em dois episódios especiais.
Em entrevista ao GShow no período da gravação, a protagonista Marjorie Estiano contou um pouco das dificuldades nos bastidores: "Levava muito mais tempo para filmar e gravávamos muito menos cenas por causa da situação", diz a atriz.
Sem esquecer que tanto aqui quanto em Grey’s Anatomy não havia ocorrido a segunda onda, tampouco a proliferação de variantes.
O bom doutor fazendo seu papel
Ainda na categoria da ficção hospitalar, não podemos esquecer de The Good Doctor, a primeira que sabiamente abriu espaço para falar abertamente sobre o assunto, destacando também as implicações na vida de quem não faz parte da área médica.
A quarta temporada abriu com o episódio Frontline (ou Linha de Frente, numa tradução literal), onde “as intenções da produção eram de utilizar a visibilidade do seriado para conscientizar as pessoas sobre a pandemia”, segundo David Shore, criador da série, citado em entrevistas.
Heróis do cotidiano
E os quadrinhos? Bem, na Marvel Comics, onde muitos personagens usam máscara há décadas, embora do jeito errado (exceção honrosa feita ao Homem-Aranha e ao Deadpool), surgiu a revista The Vitals: True Nurse Stories, em dezembro de 2020. A série de HQs acompanha o cotidiano de oito profissionais – inspirados em enfermeiros reais – na linha de frente do combate ao Covid-19.
A enfermeira Jessi Showalter, uma das profissionais que inspirou a série, declarou em entrevista à CNN norte-americana, “Pensei, 'por que eu? Não sou nada especial.' Meio que venho aqui, e faço o que amo todos os dias, tentando ajudar meus pacientes. Se isso me torna uma heroína, então acho que me tornei uma heroína".
Fugindo da linha da ficção médica, quadrinhos independentes brasileiros também dão seu recado: Confinada, série de HQs publicadas no Instagram, autoria de Triscila Oliveira (roteiro) e Leandro Assis (ilustrações), mostra como as pessoas comuns são afetadas pela pandemia.
A obra faz bonito sobretudo no campo social, mostrando os problemas decorrentes do fechamento de postos de trabalho devido ao agravamento dos casos, e a burocracia e os desmandos políticos que corrompem e travam o sistema de saúde.
Todo mundo mascarado
Continuando as produções não-médicas, a série This is Us (que escapou de ter por aqui o título espertinho É Nóis), incluiu a pandemia no seu roteiro de modo natural.
Os personagens, na quinta temporada, aparecem frequentemente usando máscaras e seguindo os procedimentos necessários e têm suas vidas afetadas pelos desdobramentos da doença. Dentro e fora da tela, já que a direção tomou a decisão de fechar a temporada com dois episódios a menos, por questões de segurança.
Risadas mais complicadas
O humor também conseguiu encarar a difícil realidade, com muito tato. Na Globo, tivemos o Diário de Um Confinado, com Bruno Mazzeo, já no início do isolamento social, com todos os perrengues que hoje já não são novidade.
A Amazon Prime trouxe também uma produção original na série 5X Comédia, com um personagem paranoico vivido por Gregorio Duvivier. Mantendo família e amigos sob estrita vigilância, leva todos à beira da loucura.
Folhetins sob pressão
Para fechar, não podemos esquecer das novelas: o principal produto de ficção da mídia eletrônica nacional foi duramente atingido. Todas as produções em curso foram paralisadas no início de 2020, e ainda estão longe de ter uma retomada nos padrões anteriores.
Nos Tempos do Imperador, produção da Globo às vésperas da estreia naquele período, só começou a ser exibida há poucos dias. Obviamente sem falar do assunto, por ser ambientada no século XIX.
No entanto, Amor de Mãe, que estava em franca exibição, foi tirada às pressas do ar, substituída por reprises (ou como virou hábito nomear, edições especiais) e voltou para seu encerramento há pouco, mostrando a passagem do tempo, o salto na contagem do número de vítimas e encarando o problema de frente no roteiro.
"Avancei seis meses para pular a parte em que as pessoas ainda estavam tentando entender [a doença], mas não podia colocar uma data para que a pandemia da ficção não se resolvesse antes da realidade", disse a autora Manuela Dias ao site Notícias da TV.
Indefinições
No SBT, As Aventuras de Poliana, que deveria entrar em uma nova fase, foi paralisada por tempo indeterminado, equipe dispensada e até agora sem muita previsão de como (ou quando, ou pior se) voltará, talvez em 2022. Continuam contratados apenas os protagonistas, Sophia Valverde e Igor Janssen.
Caso a produção de Poliana Moça veja a luz do dia, não será surpresa ver personagens usando máscaras, se embora possa parecer estranho em uma novela predominantemente musical, voltada ao público infanto-juvenil. Mas caso seja feita, será um bom método para reforçar a prevenção.
E os próximos capítulos?
Serão tempos diferentes, e como uma boa ficção, cheios de surpresas e reviravoltas. Não há uma ideia clara, e talvez ainda seja cedo, mesmo um ano e meio depois de seu início, de qual será o tal novo normal para digerirmos esses tempos com mais naturalidade. Mas uma coisa é certa: o mundo não é nem será mais o mesmo.
Só pra lembrar: use máscara e lave as mãos.
Imagem de capa - Önder Örtel / Unsplash
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.