O espetáculo da fé
“Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio.” *
Nos anos 1980, Chico Anysio apresentava em seu programa semanal um esquete divertidíssimo… o reverendo Tim Tones, no comando de uma igreja descaradamente picareta. Ele falava ao público através de um programa de tevê.
Sempre à frente de seu tempo, Chico Anysio satirizava os tele-evangelistas, sobretudo o norte-americano Rex Humbard, que há anos tinha seus programas exibidos nas manhãs de domingo no Brasil. De quebra, brincava com alguns pastores brasileiros que tentavam seguir a linha, como um tal Macedo e um tal Romildo, seu cunhado.
Mal imaginava o cidadão mais ilustre de Maranguape que nas décadas seguintes, eles proliferaram, criaram verdadeiros impérios midiáticos multinacionais, dominariam um número expressivo de canais de tevê aberta (além de uma das líderes de audiência), e de quebra exerceriam um poder político avassalador.
“Crescei e multiplicai-vos”
Atualmente existem cerca de três dezenas de emissoras de televisão com programação predominantemente religiosa. A maioria de orientação evangélica, seguidas pelas católicas e há até mesmo uma espírita.
Detalhe: a imensa maioria destas emissoras não têm cobertura restrita a um município ou região. Parte tem transmissão estadual e a maior parte distribuição nacional, por televisão aberta. Cada uma defendendo a bandeira de seus templos, que não são poucos.
Sem contar o número expressivo de horas das emissoras tradicionais alugadas para transmissão de programação religiosa.
“Quem ama o dinheiro jamais terá o suficiente”
Pesquisa realizada há três anos pela Ancine (Agência Nacional do Cinema, órgão regulador de todo o meio audiovisual brasileiro) dava conta que já naquela época, 21% da programação da TV aberta nacional era ocupada por esta ou aquela igreja.
A mais nova vítima é o canal 32 de São Paulo, que desde o final do ano passado abrigou a programação da Loading. Na virada para dezembro de 2021, a grade será ocupada integralmente pela Igreja Mundial, do autodenominado Apóstolo Valdemiro Santiago.
Mas não é a primeira vez que o canal, que abrigou durante 23 anos a revolucionária MTV Brasil, curvou-se à uma religião. Desde o final da emissora, a frequência passou por um rodízio de igrejas evangélicas, incluindo a própria Mundial.
A chegada da Loading, no final de 2020, parecia colocar ponto final e dar um destino mais digno ao canal. Foram apenas reticências…
“Quem ama as riquezas jamais ficará satisfeito com os seus rendimentos”
Geralmente, a chegada de programação religiosa às grades de emissoras convencionais é sinal de que as finanças não vão bem.
A combalida Tupi abriu espaço na segunda metade dos anos 1970 a uma ainda incipiente Igreja Universal. O mesmo aconteceu com a Rede Manchete, que ainda se viu no meio de um conflito de denominações evangélicas, ao ser “arrendada” pela Renascer em Cristo; arrendamento que nunca se concretizou, porque a igreja nunca pagou.
Sua sucessora, a RedeTV!, arrenda horários para as mais variadas igrejas praticamente desde seu primeiro ano, sempre em crise.
A Band teve horários adquiridos por décadas pela Igreja Internacional, de R. R. Soares (o Romildo citado no início desta reportagem), que de modo ou outro, sempre foi importante no fechamento das contas da rede.
O horário praticamente intocável de Soares na Band parece finalmente ter seus dias contados para o início de 2022… mas tudo pode mudar.
“Os que querem ficar ricos caem em tentação”
Até a TV Globo, a TV Brasil e a TV Cultura tem programas do tipo em suas grades. O único canal aberto que efetivamente se mantém sem nenhuma grade religiosa, por incrível que pareça, é o SBT, por determinação direta de Silvio Santos.
A TV Brasil, emissora pública que via de regra deveria ser totalmente laica, sempre teve influências católicas e evangélicas na programação. Atualmente, transmite as novelas bíblicas da Record TV, o que é efetivamente muito estranho.
Mesmo a tradicionalíssima TV Gazeta de São Paulo, que tem sua história intimamente ligada ao jornalismo e à profissionalização da televisão brasileira, há tempos precisou render-se ao dinheiro fácil das igrejas eletrônicas para conseguir honrar sua folha de pagamento.
"De que serve o dinheiro na mão do tolo, já que ele não quer obter sabedoria?"
Uma coisa que precisa ser reconhecida na maioria destas emissoras e programas é sua habilidade técnica e eficiência estratégica para o trabalho de evangelização e principalmente, arrecadação.
Alguns empregam métodos avançados de psicologia, mesclados com construções narrativas e recursos audiovisuais, capazes de amolecer o coração e o bolso do mais renitente dos fiéis. Coisa digna de prêmio.
Outros, sem tanto aporte financeiro, são obrigados a lançar mão de técnicas menos nobres, dando shows de improvisação, criatividade e muita cara de pau.
Ainda assim, a coisa não anda muito bem para parte destas igrejas e suas emissoras. O discurso de ajude-nos a manter este programa no ar nunca soou tão desesperado.
Muitas sofreram um duro golpe com a queda de arrecadação devido à pandemia, e começaram a diminuir horários alugados em alguns canais, restringindo suas pregações à emissoras próprias.
Na melhor das hipóteses, a maioria anda negociando furiosamente seus horários e reformulando suas programações. O vírus não tem apreço por esta ou aquela igreja.
“O banquete é feito para divertir, e o vinho torna a vida alegre, mas isso tudo se paga com dinheiro”
O fato é que boa parte dessas emissoras e suas igrejas, sobretudo de cunho evangélico, contam com a simpatia quase irrestrita dos atuais mandatários do Governo Federal, que tem lhes perdoado dívidas — a maioria impagáveis, na melhor e pior acepção da palavra — com a União. Que digam a Universal, a Internacional, a Renascer, a Vitória em Cristo e a Mundial.
O "namoro" entre igreja e governo não é de hoje. Uma medonha sinergia de troca de favores bastante questionável e perigosa para a democratização dos meios de comunicação, e mesmo para emissoras e trabalhadores (radialistas e jornalistas) “laicos”.
“Você pensa que pode comprar o dom de Deus com dinheiro?”
Esta “predominância” de cunho religioso na TV aberta é facilmente reconhecível. Se você pegar o line-up (a lista de canais sintonizados) da cidade de São Paulo, vai ver: são 53 emissoras abertas em operação, sendo que destas 22 são de cunho exclusivamente religioso. Se contarmos as que alugam parte da programação, o número sobe para 31. Agora, se contarmos apenas as que não têm nenhum tipo de atração religiosa na grade, sobram apenas 11.
Dentro de um espectro de mais de cinco dezenas de canais.
Não há como negar: pastores, bispos, apóstolos, padres, diáconos e congêneres aprenderam em pouquíssimo tempo a fazer um milagre, usando a tela da TV: a multiplicação de horários, emissoras e principalmente dízimos.
* Todos os intertítulos deste texto foram tiradas de versículos da Bíblia, Velho e Novo Testamento.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.