O Extraterrestre e a Cultura do Cancelamento
Quando criança, o protagonista humano do filme E.T: O Extraterrestre, Elliot, representa a ponte entre o mundo humano e o universo que E.T. traz consigo. Esse universo é simbolizado tanto por um ‘’outro’’ externo (E.T. só é um E.T. porque vêm de outro planeta), quanto por um conceito bem mais subjetivo (esse outro é um ser aparentemente sentiente) traduzido na forma de uma criatura desengonçada e esquisita, mas argumentavelmente simpática. Elliot é um mensageiro. Ele forma um laço de amizade com o extraterrestre e desenvolve, consequentemente, uma conexão que os sincroniza em diferentes situações. Podemos observar o fenômeno ao assistirmos E.T. experimentar uma cerveja ou vermos Elliot adoecer conforme E.T. também adoece. Nesse sentido, Elliot representa também a possibilidade de humanização perante uma situação que, para outros humanos, justificaria a estranheza e até mesmo a violência. Esse ‘’outro’’, afinal, tem a forma de uma criatura estranha e até então desconhecida, vinda de um planeta distante e, portanto, passível de um lugar de alteridade ameaçador. O contraponto proposto na obra de Steven Spielberg pode ser observado, de forma bem sintetizada, no trecho em que E.T. está doente e o retrato da ‘’monstruosidade’’ está nos seres humanos e não na criatura extraterrestre. Os homens que pretendem levá-lo para estudos científicos vestem roupas de desintoxicação - enormes, brancas, e esvaziadas de quaisquer elementos de identificação familiares. Exalam limpeza, mas também distância de qualquer forma legítima de empatia. Nessa cena, E.T. é a vítima e demonstra mais humanidade (simpatia e compreensão) do que os próprios seres humanos. Toda a montagem do trecho busca enfatizar isso.
Um mensageiro, portanto, deve ser capaz de compreender e transmitir símbolos, traduzidos do ponto A ao ponto B. Deve mostrar empatia, já que estará lidando com dois pólos, muitas vezes com histórias e pontos de vista opostos. O mensageiro pode ser simbolizado no arquétipo do diplomata - negociador, pacificador e pragmático. Por ter morado sozinha na Suécia, país com um idioma que desconheço, acredito que tive algumas características do arquétipo de ‘’mensageira’’ estimuladas - a habilidade de compreender e traduzir símbolos como uma jovem brasileira, a empatia ao lidar com culturas externas e o abandono de crenças consideradas radicais para conviver em uma sociedade com crenças próprias. Quando moramos fora, não estamos apenas nos representando, mas também a nossa cultura, trazendo uma bagagem que vem com nossas experiências e atitudes. A prática da negociação e subsequente abandono de crenças radicais deve ser aplicada tanto na cultura local quanto por parte do ‘’viajante’’, ou seja, tratam-se de concessões - para convivermos juntos, em paz, devemos abrir mão de crenças que podem nos trazer limitações e subsequente anti pragmatismo.
Os resultados da cultura do cancelamento, em última instância, podem ser vistos como o retrato final de sociedades (e pessoas) que não aprenderam a abandonar crenças radicais. Não estou aqui me referindo a casos icônicos da call out culture, como o cancelamento de R. Kelly, um processo necessário de denúncia a um homem que usou de seu privilégio e fama para assediar diversas mulheres. Me refiro, sim, a casos de cancelamento menores, em que haters ensandecidos buscam, ativamente, desenterrar tweets de 10 anos atrás como munição para cancelar alguém atualmente, que pode ter errado, mas também pode ter aprendido e evoluído a partir desse erro. A cultura do cancelamento surge com o nome de call out culture, em que pessoas marginalizadas e, na maioria das vezes anônimas, buscam responsabilizar outras (nomeadamente, homens brancos com muito poder) por suas ações. A call out culture é uma forma legítima de defesa e de uso da responsabilização, já que por muito tempo, tais homens usaram de seu local hierárquico para não serem questionados sob nenhuma circunstância sobre suas ações, não importando o quão absurdo fossem os desdobramentos. Uma questão que deveria ser mais debatida sobre a cultura do cancelamento, entretanto, é o quanto há margem para aprendizado e redenção, se o caso específico assim o permite. Mais importante, será que queremos essa redenção? O quanto estamos ensinando e buscando melhorar ao criticarmos essas pessoas? Temo, muitas vezes, estarmos apenas apontando o dedo para satisfazer nossa própria sede de ‘‘justiça’’ impulsionada por anos de narrativas Hollywoodianas. É extremamente questionável o quanto uma pessoa com a carreira destruída e a vida financeira em frangalhos pode tirar de aprendizado positivo ao ser corrigida por suas ações (por mais detestáveis que essas possam ser). Claro, existem famas e existem famas. Em um país desigual como o Brasil, cancelar uma celebridade do De Férias com o Ex é diferente de cancelar poderosos milicianos.
É natural que em situações de quebra de contrato - em que um indivíduo, devido a suas ações, não mais represente o enfoque ou a ética de determinada marca - perca seu local de influência naquele espaço empresarial. Entretanto, o cancelamento permeia meios outrora limitados ao ambiente corporativo. Formas de cancelamento mais violentas têm sido empregadas como expressões de bodes expiatórios, para que outros e mais medievais métodos da vigilância digital sejam aplicados. Não estamos mais falando de um método pedagógico que permite a redenção e o aprendizado subsequentes. Novamente, existem diversos casos de cancelamento, e é preciso separar o que é passível de uma simples quebra de contrato, daquilo passível de uma destituição total do indivíduo de seu ambiente profissional. Aquilo que abre margem para uma redenção, e o que é totalmente imperdoável e passivel de punição, inclusive, jurídica. Faltam às sociedades canceladoras, aos anti-cancelamento como um todo e aqueles no meio do caminho, igualmente, um bom mensageiro como Elliot, para que possamos superar crenças radicais ao mesmo tempo em que buscamos promover o debate.
Imagem de capa - Clássica imagem do filme E.T - O Extraterrestre. Elliot, o jovem protagonista, voa com o auxílio de E.T em sua bicicleta, suas sombras projetadas sob a lua cheia. Crédito: Blake Little.
Este artigo foi escrito por Amity Dystyler e publicado originalmente em Prensa.li.