O homem do castelo alto e um mundo dominado por nazistas
Imagem: A Estátua da Liberdade saúda a Ilha de Manhattan, dominada pelo Reich alemão (Imagem/reprodução: Amazon Prime)
O ano de 1962 estava sendo o mais difícil para o equilíbrio mundial. A Guerra Fria, um longo conflito diplomático entre as duas principais potências do mundo, começava a dar mostras de que uma tensão nuclear traria o caos para o planeta.
De um lado, a Alemanha Nazista, principal campeã da 2a Guerra Mundial, possuía uma tecnologia avassaladora, a bomba atômica. O rival do pólo oposto, o Japão, um império que ocupava metade do solo norte-americano e do mundo todo, ainda buscava um mecanismo tão poderoso quanto.
Hitler, já velho, parecia carta fora do baralho, e o Reich tinha outros nomes que poderiam assumir a liderança naquele momento tão perturbador. Os japoneses, de seu lado, tinham um império vasto pelo oceano pacífico, da Oceania à metade da América do Norte, mas ainda temiam uma guerra contra seus (ainda) aliados alemães.
Quem ganharia esse conflito?
Você não leu errado. Essa é a história do pós-guerra, segundo o livro O Homem do Castelo Alto, uma distopia épica de Philip K. Dick que ganhou quatro temporadas de uma série no Prime Video da Amazon.
Um mundo dividido entre japoneses e alemães próximo de uma Guerra Fria (Imagem/reprodução: Amazon Prime)
Um mundo dominado por nazistas e japoneses
Entre o livro e a série, há composições narrativas distintas, que tomam rumos diferentes, apesar de um elemento ou outro permanecerem interligados.
Em ambos, o momento chave em que uma nova linha do tempo é criada é o atentado contra o presidente Franklin D. Roosevelt em 1933. Este evento de fato ocorreu, na cidade de Miami. O ítalo-americano Giuseppe Zangara abriu fogo contra o comício do presidente, que estava acompanhado pelo prefeito da cidade de Chicago, Anton Cermak.
Na história factual, Roosevelt escapa, e sobra para Cermak a bala de execução. Anos depois, o presidente norte-americano seria peça fundamental para o esforço de guerra dos EUA contra as potências do eixo.
Porém, na narrativa d’O Homem do Castelo Alto, o atentado culmina com a morte de Roosevelt, que é sucedido por presidentes fracos politicamente e que acabam adotando uma política de isolamento tal que culminaria com o enfraquecimento dos EUA, virando presa fácil para os avanços japoneses no Pacífico.
Sem o que teria sido o governo Roosevelt e políticas como o New Deal, os EUA não conseguiriam se recuperar da grande crise econômica que assolava o mundo desde 1929.
Quando a guerra eclode e a supremacia militar alemã no palco europeu da guerra se mostra evidente, os ingleses lutam sozinhos na frente ocidental, enquanto a União Soviética resiste na frente oriental.
Caindo os soviéticos em 1941, os nazistas praticamente liquidam a guerra. Ao mesmo tempo, os japoneses anexam Pearl Harbor e invadem os EUA.
Essa linha do tempo cria um mundo governado por nazistas e japoneses, que repartem os continentes entre seus impérios, permitindo a existência de zonas neutras, onde refugiados se aglomeram, sempre sob os olhares atentos das polícias políticas de ambos os lados.
A Times Square ostenta a suástica nazista, numa Nova York dominada pelos alemães (Imagem/reprodução: Amazon Prime)
Assim como na linha do tempo real, tecnologias nucleares são desenvolvidas, e um iminente conflito entre as potências vencedoras agita uma edição alternativa da Guerra Fria.
É neste contexto que acompanhamos as histórias de Juliana Crain (ou Frink, no livro), Frank Frink (ex-marido de Juliana no livro, noivo na série), Joe Blake (ou Joe Cinadella, no livro), o ministro Nobusuke Tagomi, o alto agente nazista John Smith, além de diversos outros personagens secundários.
Em comum, suas vidas possuem uma obra chamada de O Gafanhoto torna-se pesado. No livro de Philip Dick, trata-se de um best seller proibido pelos nazistas. Na série, é um conjunto de filmes que circulam clandestinamente.
Ambos tratam da mesma coisa: uma narrativa paralela, em que, na verdade, os Aliados haviam vendido a guerra contra as potências do Eixo. Seu autor, o misterioso “homem do castelo alto”, é procurado por nazistas, japoneses e pela Resistência norte-americana.
Uns querem matá-lo, outros querem fazer sua obra circular. Em todo o caso, a trama de Philip Dick, seja a série, seja o livro, brinca com as múltiplas possibilidades de realidades paralelas.
Juliana assiste a “O Gafanhoto torna-se pesado” e descobre a utopia de um mundo sem nazistas ou o império japonês (Imagem/reprodução: Amazon Prime)
Distopia, utopia e história contrafactual
O Homem do Castelo Alto pode ter dois tipos de categorização. É tanto uma distopia quanto uma história contrafactual.
A distopia, no grego antigo, significa literalmente "lugar ruim". Trata-se de uma narrativa sobre um lugar ou época fictícios, em que há uma sociedade caracterizada pelo totalitarismo, autoritarismo e controle opressivo. É, de fato, a antítese da “utopia”, um lugar ideal, perfeito.
E é interessante notar que, dentro da distopia, há uma narrativa utópica, que é O Gafanhoto torna-se pesado, o livro/filme que mostra um mundo livre dos nazistas e do império nipônico, escrito pelo misterioso homem do castelo alto.
Já a história contrafactual é uma espécie de campo especulativo da pesquisa histórica, preocupado com o “e se?” dos eventos históricos. Muito contestado por historiadores, esse tipo de pesquisa tem nomes de peso da historiografia, como Neil Ferguson, renomado historiador escocês, professor na Universidade de Harvard e autor do livro The pity of war, no qual analisa como seria o mundo se o império britânico nunca tivesse participado da Primeira Guerra Mundial.
Então, estamos diante de uma obra que nos apresenta uma realidade alternativa, de uma sociedade sob controle opressivo e totalitarismo (distopia), que vive uma linha do tempo onde descobrimos (especulativamente) o que teria acontecido se o Eixo tivesse vencido a guerra (história contrafactual), onde, em sua narrativa, temos contato com uma história que nos apresenta um lugar bom, melhor, perfeito (utopia), com os Aliados vitoriosos.
Estes três elementos demonstram o porquê de O Homem do Castelo Alto ser uma obra tão envolvente.
Assistir a série ou ler o livro?
Uma coisa não anula a outra, nem vou adotar uma posição preciosista de que você precisa ler o livro para poder assistir a série.
As duas narrativas seguem percursos diferentes, apesar de manterem a mesma essência. Com uma diferença e outra de ocasiões, cenários e circunstâncias, a história escrita por Philip Dick em seu livro já clássico de ficção científica está presente na série, que expande as histórias e as possibilidades em 4 temporadas de 10 episódios cada.
Eu, particularmente, li o livro enquanto assistia a série. Pude comparar ponto a ponto as divergências.
Em suma, “faz o que tu queres, pois é tudo da lei” (como diria Raul Seixas, citando a filosofia de Thelema). Leia o livro, assista a série, ou os dois ao mesmo tempo. Só não deixe de conhecer O Homem do Castelo Alto.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.