O Homem que Odiava os Super-heróis
Uma história em quadrinhos mediana, uma série excelente, um roteirista de Histórias em quadrinhos genial que atirou no que viu e acertou no que não viu. Essas são as contradições que culminaram no programa que se tornou despretensiosamente, o forte contraponto de inflexão ao novo fenômeno da cultura de massa das adaptações cinematográficas do universo de super-heróis.
Aguardada com ansiedade pela crescente legião de fãs arregimentada desde sua estréia em 2019, The Boys, a série produzida pelo Amazon Prime baseada nos quadrinhos escritos pelo roteirista irlandês Garth Ennis, começa sua terceira temporada entregando mais uma vez ao fandom tudo o que promete: trama forte e consistente, bem costurada, doses equilibradas de um humor ferino ( e até certo ponto doentio ), sarcasmo e drama, violência gráfica e uma produção em efeitos práticos e visuais de qualidade cinematográfica incomum em séries de TV/streaming. As coisas não poderiam estar, portanto, melhores para seu criador hoje, algo bem diferente de quando The Boys, a HQ, era cancelada pela editora DC Comics após sua sexta edição, quando foi lançada há 16 anos.
Histórias em quadrinhos, sobretudo as de super-heróis norte-americanos, sempre foram encaradas como um entretenimento frívolo para crianças, até a indústria observar que, cada vez mais adolescentes, jovens e adultos - que haviam sido leitores quando crianças - se mantinham fiéis ao hábito de consumir aquele conteúdo. Quadrinhos destinados a um público mais maduro nunca foram exatamente uma novidade, o mercado japonês, o franco-belga, o italiano, estão aí há muitas décadas para comprovar.
O fato é que, a partir de 1962, quando surge o universo compartilhado dos heróis Marvel, uma mudança permanente no status das histórias daqueles personagens que vestiam collant com a pretensão de salvar o mundo estava para mudar. Naturalmente, as editoras passaram a investir muito em criadores que não apenas soubessem escrever uma história clássica do gênero, mas que tivessem também a competência de aproximá-las ao mundo daquele novo leitor.
O super-herói já não era mais um ser perfeito e onipotente, ele também tinha problemas mundanos e precisava salvar a pátria em meio às complexas demandas conjunturais de seu tempo. Nos anos 1980, com uma jogada ousada na construção desse quadrinho para leitores maduros, a DC Comics voltou seus olhares para um mercado menor, mas terrível e insanamente criativo, o dos quadrinhos ingleses, repleto de jovens criadores vindos dos mesmos subúrbios operários que iniciaram a revolução Punk nos domínios da Rainha Elizabeth, desde o fim dos anos 1970 e que faziam a sua própria revolução Punk em publicações como 2000AD, com ilustrações que iam na contramão da arte estruturada e careta dos gibis americanos e com roteiros adultos, intrincados e anárquicos.
Sujeitos como Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison, foram importados para os EUA para escrever ao seu modo, os heróis dos gibis americanos. Oriundo de uma segunda geração dessa “invasão britânica”, nos anos 1990, o irlandês Garth Ennis encontrou uma estrada já pavimentada pelos seus antecessores e pôde se dar ao luxo de erigir uma premiada e aclamada carreira mais autoral, rejeitando aqueles ícones do imaginário popular e cultura de massa.
E o motivo era: Ennis simplesmente ODIAVA super-heróis. Isto era tão sério que, quando obrigado a escrever algum super-herói, Ennis aproveitava para humilhar, debochar e ridicularizar o mesmo das maneiras mais torpes e insanas. Fazer o famoso anti-herói Justiceiro assassinar TODOS os heróis Marvel com requintes de crueldade ou declarar coisas como “O Lanterna Verde representa tudo o que há de mais errado, bobo e estúpido num herói”, dão apenas um pálido panorama do desprezo que o roteirista nuntre por esses amados personagens.
Mas esse ódio atingiria as últimas consequências quando, em 2006, Ennis criou a HQ The Boys, que fazia uma sátira escrachada, repleta de toda sorte de atrocidade descomunal nauseante, num universo ficcional, onde todos os super-heróis, que eram versões distorcidas de heróis da própria DC e o pior, sob o guarda-chuva editorial da própria DC. Descontente com o festival de bizarrices da sátira, a DC decidiu pôr fim à publicação no sexto número, deixando Ennis livre para continuar e concluir sua história noutra companhia, no caso, a editora Dynamite em 72 edições.
Como leitor de quadrinhos, sou da opinião de que The Boys é uma obra menor de Garth Ennis. Não é bem escrita, não é bem desenhada, calca-se apenas numa catarse de sua expressão de ódio aos super-heróis. Mas parafraseando o próprio autor, tudo o que “representava de mais errado, bobo e estúpido” naquela HQ, funcionou com excelência numa ótima série de TV.
Naquele universo ficcional, os Super-Heróis são criações vindas de experimentos científicos tocados por um conglomerado empresarial privado, e cada “super” é uma pessoa comum que serviu de cobaia para um composto capaz de transformar uma pessoa comum num ser poderoso. Longe do público, esses heróis são vendidos como benfeitores, seres impolutos e grandiosos. Vendidos de fato, já que há uma gama de produtos atrelados a estes salvadores da pátria que fazem o conglomerado lucrar bilhões. Da lancheira ao tênis, tudo é uma marca ou uma propriedade lucrativa atrelada a um determinado herói. A questão é que por terem sido criados sem a bússola moral que faz um herói ser um herói, os aspirantes a super são escolhidos não pela formação de caráter mas por condição física.
Temos uma fachada pública de seres grandiosos, mas que são pessoas horríveis de maneiras inconcebíveis e de posse dessas informações, rapazes comuns ( The Boys ) decidem lutar contra essa tirania. Uma premissa interessante que não foi muito bem desenvolvida nos quadrinhos, mas que acabou ganhando corpo e encontrando seu lugar dentro do audiovisual, a linguagem cinematográfica /televisiva deu àquela história, todas as nuances que faltavam na sua mídia original.
E o maior acerto neste sentido, foi como essa trama se ajustou como uma luva dentro da atual conjuntura. Os “supers” estão em por toda a parte naquela realidade ficcional, inclusive dentro da mídia. Nos programas de TV, nos noticiários televisivos, na internet, dizendo o sobre o que vestir, comer, comprar, opinando sobre as pautas do dia movidos por likes e viralizações. Qualquer semelhança sobre as nossas subcelebridades e influencers das redes que por algum motivo são seguidos, lidos e ouvidos por uma legião de seguidores, não é mera coincidência.
Sob o pano de fundo do que poderia ser mais uma série de aventura e ficção científica, The Boys é a alegoria perfeita sobre os perigos do poder absoluto, seja ele hegemônico dentro de uma formatação política convencional, corporativa ou do chamado soft power, que está sempre a serviço de ambas, como aquele sujeito conhecido que monetiza com uma publi nos seus Stories e podcasts depois de falar uma enorme besteira.
The Boys é sobre as fachadas e bastidores, sobre os conchavos, sobre a opressão diária seja ela convencional, do consumismo e como nós seres comuns podemos aceitar, lutar contra…ou constatar que pode não haver muito a ser feito. The Boys é sobre as narrativas, sobre a pós-verdade e como elas podem ser um instrumento de poder perigoso favorecendo populistas e supremacistas. É muito fácil para o espectador exercer a teoria de suspensão de descrença com tantas discussões interessantíssimas acontecendo em episódios ágeis repletos de humor ácido, diálogos afiadíssimos, personagens muito bem construídos e uma trama deliciosamente bem escrita.
As histórias em quadrinhos de super-heróis cresceram junto com seus leitores, que em algum momento desejaram que elas se tornassem um meio para discutir os seu próprio mundo, demandas e conjuntura. É possível que nossos filmes e séries do gênero estejam passando por essa mesma evolução. Ao menos, se a indústria do audiovisual quiser continuar lucrando neste ramo com uma audiência que envelhece e amadurece, vai ter que achar essa voz. O equilíbrio entre um entretenimento que cumpra seu papel, sem deixar de lado as discussões importantes do mundo do qual somos parte.
Se começarmos a achar que as coisas estão frívolas, repetitivas dentro da fórmula Marvel, que já demonstra um certo cansaço, e chegarmos à conclusão que o problema está no gênero…que olhemos com carinho para The Boys. E também séries como Pacificador, Patrulha do Destino, Watchmen, The Umbrella Academy e filmes como Coringa e The Batman, que estão aí para mostrar que através da releitura, revisão e desconstrução, é possível contar outras histórias de super-heróis sem perder pelo caminho o fascínio que o universo desses personagens que tanto amamos exerce.
Garth Ennis era o escritor do mainstream de quadrinhos que detestava os super-heróis e talvez sequer imaginasse que sua história catártica e descompromissada estivesse sendo um contraponto crítico tão importante depois de tantos anos. Ame-se ou odeie-se os super-heróis, a verdade incômoda é que eles nada mais são que a inusitada representação da humanidade... de capa e collant.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.