O Imposto de Renda nosso de cada dia
Este artigo não é técnico. Não pretende mostrar passos da Declaração Anual de Imposto de Renda ao leitor nem ensinar técnicas contábeis. Por outro lado, há uma história demonstrativa da formação das relações governo-cidadão por trás da noção de imposto de renda. Nesse contexto, nota-se como os governos perderam e perdem grande oportunidade para transformar o Brasil no real país do futuro.
Um país de futuro que parece não chegar.
A fúria arrecadatória dos governos de todos os países é justificada pela necessidade de manutenção da máquina administrativa. Em teoria, essa máquina deve devolver o que o cidadão desembolsa em contribuições, taxas e impostos na forma de serviços públicos equivalentes. Contudo, tem-se que esse equilíbrio não é percebido nos países em desenvolvimento.
No Brasil, a ideia de que os impostos servem única e tão somente para alimentar a vida nababesca de autoridades governamentais é antiga. É de antes ainda do nascimento do próprio Benjamin Franklin, que cunhou a famigerada frase destacada no início deste artigo.
Há quase 200 anos, a primeira Constituição brasileira criava uma espécie de planilha de orçamento imperial. Por ela, o governo de então, 1824, passou a ser obrigado a apresentar planejamento de arrecadação e respectivos gastos. De certa maneira, a intenção foi das melhores. Contudo, tanto naquela época quanto na atual, o tal equilíbrio das contas públicas com o erário arrecadado jamais foi transparente.
Impostos escorchantes X lucidez imperial
Havia impostos para tudo. Alguns deles têm pecha de macabro e desumano, segundo os conceitos sociais atuais; um era chamado Imposto sobre Posse de Escravos. A partir dele, o Governo instituiu a Matrícula Geral de Escravos com o fim de não perder o controle sobre sonegação. Ou seja, nada havia de humano nessa decisão.
Bebidas ditas “espirituosas” (alcoólicas), distinções honoríficas, cavalos e bestas em trânsito pela Capital eram supertaxados; importação de pólvora e chá pagavam mais de 50% de imposto. Curiosamente, apostas e prêmios de loteria detinham taxas não tão absurdas.
Nesse universo de ganância, Dom Pedro I parecia apresentar algum bom senso. Um dos decretos constituintes mandava dispor recursos anuais para cobrir todas as despesas imperiais, incluindo manutenção das dependências. Entretanto, o imperador ordenava que boa parte do valor se destinasse à educação de crianças pobres e patrocínio de artistas. Carlos Gomes foi um dos agraciados por essa lucidez.
Além disso, o regente posterior, Dom Pedro II, manteve o valor de 800 contos de réis (mais ou menos 100 milhões de reais atuais em cálculos primários) inalterado por décadas. A máquina arrecadatória aumentou consideravelmente o poder de recolhimento de impostos durante décadas seguidas; ainda assim, o imperador não permitiu ajustes no valor destinado ao palácio.
Por que Imposto de Renda
Você sabe que paga imposto de renda. Entretanto, sabe por que paga?
Bem, primeiramente porque é constitucional. A Lei do Orçamento 4625, de dezembro de 1922, criou o conceito geral de imposto sobre a renda. Em verdade, já havia impostos que abocanhavam parte do que era considerado “renda” na época.
Somente em impostos federais, o Governo recebeu quase um trilhão e meio de reais em 2020, segundo a seção de Economia do site UOL. Neste fim de setembro de 2021 (28/09), o valor se aproxima de 1,9 trilhão, conforme indica o site Impostômetro. Parcela considerável está atrelada ao imposto de renda.
A teoria da política social prediz que impostos servem para os governos produzirem bem-estar físico e emocional aos cidadãos. Ou seja, pensamento contrário a “impostos servem única e tão somente para alimentar a vida nababesca das autoridades governamentais”. O problema é que nem sempre a teoria condiz com a prática.
Assim, com base nos números e nos pensamentos acima, pode-se responder à pergunta do início deste capítulo: você paga imposto de renda para embasar parte do bem-estar social. E para manter a gana pomposa e luxuosa de alguns parlamentares.
Conceito de imposto de renda
A esmagadora maioria dos estudiosos de Economia com certo nível de humanismo diz que o imposto de renda é o mais justo de todos os tipos de contribuição. O conceito de Imposto Socialmente Justo está embutido na ideia em si de imposto de renda. Em princípio, trata-se da boa e velha busca por redistribuição de renda adequada.
Esse escopo de justiça é percebido tanto no processo de arrecadação do imposto de renda quanto no momento de aplicação do valor arrecadado. Afinal, diferentemente da maioria dos impostos, o valor conseguido não tem destino específico. Nesse cenário, tem-se que o IR é altamente democrático.
Outro ponto que indica caráter justo nesse imposto é o mecanismo de aplicação. Em tese e em boa parte da prática, quem mais lucra com rendas disponibiliza valores maiores para contribuição.
Além disso, há ainda o sistema de porcentual progressivo: os contribuintes são classificados em degraus que representam seus recebimentos mensais.
quem tem renda mensal de até pouco menos de 02 salários mínimos não é considerado fonte arrecadatória; está, portanto, isento
o cidadão com renda entre esse valor e 2,5 salários mínimos dispõe de 7,5% de seus proventos mensais
o próximo degrau é de 3,5 salários mínimos, que contribui com 15%
acima desse valor, a contribuição sobre para 22,5%
Veja mais abaixo nova tabela contida na reforma proposta pelo governo.
Júnia Cidade é advogada. Define o imposto de renda - ou Imposto sobre Renda e Proventos de Qualquer Natureza, nomenclatura oficial - como “...instrumento de redistribuição de renda, buscando manter em equilíbrio o desenvolvimento econômico das diversas regiões” cuja legislação específica, não obstante complexa, tem “[…] como objetivo torná-lo o mais justo e pessoal possível”.
Então, por que reformar o Imposto de Renda?
Para torná-lo ainda mais justo ainda. Oxfam Brasil é instituição voltada à justiça social. Por suas próprias palavras, busca “contribuir para a construção de um Brasil justo, sustentável e solidário”, com visão de um país “[...] sem pobreza e desigualdades, onde as pessoas sejam [...] tratadas com igualdade”.
Recentemente, a instituição publicou um “Manifesto por Impostos mais Justos para Todos!”. Nele, sugere melhoria no sistema de arrecadação como um todo, em especial nos impostos voltados à renda.
Tributação indireta
Os técnicos da referida instituição demonstram que a força de tributação recai mais sobre o consumo. Não obstante o sentido de justiça do imposto de renda (“quem tem mais paga mais), eles alertam para o fato de os percentuais maiores atingirem mais a classe média e baixa, posto que são as que mais consomem produtos internos. Com isso, o tal desequilíbrio impostorial se intensifica.
Ainda para aqueles técnicos, os percentuais deveriam incidir sobre quatro fontes básicas: renda, propriedade, consumo e contribuições sociais. Contudo, não devem ser equitativos, mas proporcionais ao peso que cada uma das bases infere sobre a população.
A chamada “tributação indireta” - impostos sobre consumo - é a mais chamativa. Metade da arrecadação no país se dá por impostos advindos dessa base. Em relação ao Imposto de Renda da Pessoa Física, as alíquotas pesam mais sobre as rendas médias.
Progressividade desproporcional
Nesse contexto, a progressividade poncentual mencionada acima perde o sentido prático. Quanto às rendas mais altas, seus lucros e dividendos não pagam impostos. Assim, a desproporcionalidade se torna ainda mais evidente.
O Imposto de Renda da Pessoa Jurídica concentra ainda mais possibilidade de desequilíbrio. Afinal, ajustam suas declarações a diferentes estratégias de tributação, como contribuição sobre lucros reais. Brechas legais permitem minoração de lucros; por consequência, menor contribuição.
Proposta do governo e opiniões divergentes
O governo enviou plano de alteração no sistema de tributação do imposto de renda ao Congresso. A visão dos congressistas sobre quase tudo que qualquer governo lhes envia para análise é sempre divergente. Aliás, isso é inerente à democracia e ao Estado de Direito. O governo atual, no gerir dos dados, tem sido profícuo em divergências.
Em fins de junho e começo de julho, o Congresso recebeu o Projeto de Lei 2337. Trata-se da segunda fase da reforma tributária, já discutida neste texto do site Prensa. Ainda assim, a chamada primeira fase está parada há mais de um ano, que diz respeito à unificação do PIS/Cofins em um IVA federal.
A redação do plano apresentado é complexa; entretanto, é evidente que a intenção do governo é dificultar aquelas estratégias de minimização de contribuição seguidas por muitas empresas e cidadãos.
Pessoa física X pessoa jurídica
Análises sobre sistemas tributários em sociedades com economia forte desenham um cenário diferente deste encontrado no Brasil. A economia dos países mencionados busca equilibrar a tributação entre atividades empresariais e cidadãs, num processo de compensação. Aliás, parte do texto do plano de reforma do governo brasileiro tenciona chegar perto desse processo, como se vê logo abaixo.
Para muitos estudiosos, entretanto, o problema da proposta enviada ao Congresso está em buscar reforma integrada para as duas fontes geradoras: jurídica e física. Para estes, seria mais adequado provocar o Congresso com duas propostas, apresentadas em períodos diferentes.
Alinhamento das atividades internas
Especialistas com visão mais global alegam que a proposta do governo precisa de ajustes. Assim, seria possível colocar o sistema tributário em consonância com expectativas internacionais, de modo a atrair mais investimentos. Alegam que tanto o sistema atual quanto o proposto levam suas garras sobre a produção, em especial a industrial.
Estados e municípios têm mostrado contrariedade em relação à proposta. A alegação é que, com a alteração, a economia permanecerá travada por peso tributário complexo. Com isso, é possível que as discussões se estendam além do esperado, a exemplo da primeira fase da reforma tributária.
Reforma X Emprego
O economista Romero Tavares, PhD em tributação pela universidade de Viena, prevê que o plano do governo pode diminuir a geração de investimento. Assim, possivelmente vai causar desemprego. Em entrevista à Fernanda Pinotti e Priscila Yazbek, da CNN de São Paulo, chegou a afirmar que “o projeto é ‘terrível’ para a economia brasileira”.
Tavares ainda calcula que a tributação sobre lucros e dividendos diminua a capacidade de manutenção de emprego em empresas com grande número de colaboradores. Já esse fato, em relação às médias empresas, há de dificultar crescimento econômico; consequentemente, de elevar o índice de empregos.
Certo alívio para empregados...
O plano do governo, com a nova proposta, é aumentar o limite mínimo de isenção do degrau da tabela do imposto de renda. Este aumentaria dos quase 2 salários mínimos para 2,5 salários mínimos.
o segundo degrau da tabela, de R$ 2.500,01 até R$ 3.200, contribuiria com 7,5%
o terceiro, de R$ 3.200,01 até R$ 4.250, com 15%
já o quarto, R$ 4.250,01 até R$ 5.300, com 22,5%
o último, acima de R$ 5.300,01, com 27,5%
... e para os mais necessitados
Em fins de setembro de 2021, a Câmara dos Deputados deu aval à intenção do Governo de estender a reforma do imposto de renda aos mais pobres. Com isso, tão logo a reforma seja aprovada, o Planalto pretende lançar o “Programa Auxílio Brasil”.
Trata-se, em verdade, de substituição do programa Bolsa Família. Assim, será possível dirigir parte dos dividendos originados no novo sistema de tributação do imposto de renda para embasar o “novo” programa.
Veja mais no site Prensa
Você, leitor, dispõe de centenas de artigos na seção Economia deste site. Estão divididos em temas, como agronegócio, bancos, câmbio, empreendedorismo, carreira, logística etc. Por eles, você consegue ampliar a visão sobre o universo macro e microeconômico.
Esteja com o Prensa.
Imagem de capa - A bocarra do leão do Imposto de Renda está aberta, mas ele pretende ser manso (foto - Petr Ganaj - via Pexels
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.