O Lugar: Quando a ascensão nos causa culpa
Fósforo Editora. O lugar, por Annie Ernaux. Fósforo Editora, 2021. Prêmio Renaudot.
Fazer uma resenha sobre O Lugar foi desafiador! Estamos diante de um livro que trata de assuntos delicados de maneira delicada e ao mesmo tempo, totalmente racional. Pudera! A autora Annie Ernaux , laureada com o Prêmio Marguerite-Yourcenar em 2017, sabe ir direto ao ponto!
“Talvez eu escreva porque já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro.”
Qual o seu lugar?
Sem adjetivar muita coisa, Annie começa a narrativa 15 anos após a morte do pai, enquanto revive lembranças acumuladas em meio a dor da perda. Às vezes é assim que acontece, né?
A dor nos traz de volta ao lugar que geralmente evitamos, talvez pelo desconforto ou até mesmo para conseguirmos seguir em frente. Esse livro vem nos trazer isso. Uma história que não nasce da dor propriamente dita, mas não seria errado dizer que sim.
Envolto em lembranças de um tempo onde a "sociedade da moralidade" se moldava, essa auto sociobiografia que lançou Ernaux a fama, onde ela relata a vida do pai e consegue esmiuçar detalhes de relações familiares e de classe, servindo de inspiração na autoficção mundial.
"Lágrimas, silêncio e liberdade"
Annie conta a história de um pai nascido pobre, um camponês que nasceu na Normandia sem condições específicas de priorizar os estudos e que, mais tarde, viria a se tornar um operário até reunir suas economias e abrir uma mercearia.
Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, é forçado a mudar de cidade e abrir uma nova bodega, que viria a dar uma estrutura para que ele pudesse dar uma infância digna a sua família e garantir a oportunidade de a filha entrar na universidade.
A autora retorna a história de um homem que, de certa forma, ascende socialmente, mas nunca se esquece onde é seu lugar, com uma narrativa simplória, Annie consegue ilustrar a vida de um homem moldado pela sua classe social.
Homem este que preferia ficar calado ao estar diante de pessoas de classe social diferente, com medo de passar vergonha e ser motivo de chacota, e lutava sempre para esconder seus traços de inferioridade.
"em suma, comportava-se com a inteligência, que consistia em perceber nossa inferioridade e combatê-la, encontrando meios de escondê-la o melhor que podia"
Pertencimento
Através de O Lugar, é possível 'ver' a distância entre pai e filha, causada pela distância social entre os dois, na qual Annie traz à tona a culpa pela ascensão, muito comum até mesmo nos dias atuais.
Annie talvez tenha se perdido em meio a 'prosperidade de sua vida', enquanto seu pai sempre soube onde estava suas raízes, o que não lhe trazia nenhuma vergonha, diferente de Annie.
O livro revela memórias de progresso e a autora não hesita em deixar evidente a sua culpa por se afastar tanto da sua ancestralidade. Ancestralidade essa envolto a tradições de uma família que teve que trabalhar duro para crescer. E deixando pra trás toda uma vida de costumes daquela classe ‘inferior’.
A vergonha de seu pai e seus costumes tão pitorescos nos mostram muito sobre nós! De fato, querer ascender financeiramente não é o problema aqui! Porém o livro nos leva a um lugar de questionamento referente a o que queremos que ascenda conosco.
Nossa base e nossas raízes é tudo que nos torna único e pertencente a algo, e na medida que nos afastamos disso a gente se aproxima de um abismo de conflitos e, às vezes, a perda da identidade. Prosperar financeiramente sem a ascensão cultural não nos tira da nossa base.
Diferente de Annie, seu pai não chegou a ‘elite’, mas tinha um dinheirinho que lhes trouxe conforto e ainda assim, dinheiro sem conhecimento não o incluíram nas rodas da grande sociedade ao passo que, Annie que se encontrava na ‘elite de privilegiados’ se esquece completamente da sua base enquanto seu pai sabe verdadeiramente onde é o seu lugar.
Agora fica fácil saber porque esse é que fala tanto sobre amor, distância e luta de classe é um grande sucesso na frança e eu não sei vocês, mas eu já estou bem animada pra conhecer mais sobre Annie Ernaux!
Este artigo foi escrito por Roxanne Soares e publicado originalmente em Prensa.li.