O "projeto-crise" da educação
Sala de aula de uma escola pública no Rio Grande do Sul. Foto: Igor Sperotto
A câmara dos deputados aprovou, em regime de urgência, a regulamentação do homeschooling no Brasil. O projeto voa ao senado, onde a esfinge – mais conhecida como emendas do relator - determinará sua sorte.
O roteiro de absurdos é tão vasto que fica até difícil criticar somente o questionável método de ensino. Vamos por partes, então:
A começar pelo atestado de completa inépcia de todos que passaram pelo MEC nos últimos quatro anos. É impensável ter como plataforma do ministério, de um país continental (e subdesenvolvido), educação domiciliar.
O projeto de governo para a educação é o escárnio da cara dos cidadãos. A proposta do homeschooling foi meta dos primeiros 100 dias de governo e congelou por três anos até agora. No ano passado foi a única – repito: a única – pauta prioritária para a pasta no governo.
Em plena pandemia, com milhões de crianças em casa sem internet para estudar, a única coisa que os governistas se dispuseram a fazer foi escrever o texto-base agora votado. Já diria Darcy: - a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.
O outro lado desse “projeto-crise” é o saque às verbas públicas. Vide o último escândalo que derrubou Milton Ribeiro, com seus pastores, barras de ouro e os desvios no FNDE. No fim, todos os afluentes desaguam no orçamento secreto, que mantém o rio em curso.
A pretexto de “combate à ideologia”, dinamita-se o sistema educacional
O Censo Escolar, do Inep, reportou que a evasão no ensino médio das escolas públicas dobrou de 2020 para 2021. O número saltou de 2,3 para 5,6 por cento dos jovens.
De 2019 a 2021, o mesmo Inep registrou recuo de matrículas nas escolas e creches. Na prática: evasão escolar da ordem das 650.000 crianças até cinco anos. Mas os aliados no congresso precisam defender os 11.000 alunos cujos pais optaram pelo homeschooling.
As regras aprovadas expõem, ainda que queiram esconder, panoramas da escolaridade brasileira. Por exemplo: apenas pais comprovadamente formados no ensino superior poderão optar pelo modelo. Só isso já recorta o ensino domiciliar como possibilidade para filhos de menos de 20% dos adultos.
Dentro dos 20%, recortamos novamente para famílias que oferecem tempo, paciência e estrutura para que a prole estude em casa sem prejuízos na formação. O modelo atende estreito extrato da sociedade.
O texto também prevê avaliações anuais do estudante numa instituição de ensino em que este mantenha matrícula, além de acompanhamentos semestrais com docentes. Imaginem a complicação numa escola da rede pública, onde já falta professor, entre o quadro e os alunos, de segunda a sexta.
É mais uma porta aberta para a evasão. Pais desnaturados que, porventura, tratem os filhos como propriedade - e caiam nessa de protege-los do “comunismo” -, mas não tenham condições de bancar o modelo, enfrentarão problemas sérios.
Os dedicados deputados da base aliada do governo, inclusive, já pensaram em tudo. Incluíram um destaque na lei que exime responsáveis que optem pelo homeschooling de abandono intelectual de dependente.
Efeitos colaterais
Todo esse debate ainda encontra camadas mais profundas. Tirar a criança da escola é tira-la do convívio social, elementar no seu desenvolvimento enquanto ser humano.
A outra metade desse argumento também é tema candente na sociedade – inclusive aos “defensores da família”.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2021, apontam que 67% dos casos de violência e abuso contra crianças e adolescentes acontecem dentro de casa, provocados por pessoas próximas ou da família.
Desses casos, quase 20% são de abuso sexual. O número, no entanto, apresenta subnotificação em todas as pesquisas do tema. É mais difícil descobrir ou a vítima delatar. Sem educação sexual nas escolas, muitas vezes a criança não tem noção da violência de que é acometida.
Nesse sentido, a escola é um espaço importantíssimo de proteção do direito à infância. Isso ficou provado durante a pandemia. Com a volta às aulas, o número de denúncias de violências e abusos dobrou em relação ao início da crise pandêmica.
O magistério, além de capacitar pessoas para transmissão de conhecimento - progressão do desenvolvimento intelectual em cada fase do crescimento - também prepara, minimamente, para lidar com situações desse tipo. O comportamento é um sintoma.
A “crise-projeto” articulada pelo governo tem alvo. Atacar a escola é estratégico. Atacar a educação sexual tem objetivo tático. Negar o acesso ao conhecimento é destruir qualquer base de sustentação do país que um dia conhecemos ou sonhamos almejar.
A educação sozinha não garante desenvolvimento, mas sem ela não há desenvolvimento algum.
Sobre o aumento de denúncias:
Sobre o Anuário:
18 de maio: Escola é espaço de proteção e combate à violência sexual | CNDE (campanha.org.br)
Sobre a evasão escolar:
Censo Escolar: mais de 650 mil crianças saíram da escola em três anos | Agência Brasil (ebc.com.br)
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.