O Quase Fim e Recomeço dos Beatles
Não existem grandes apresentações gravadas ao vivo dos Beatles registradas. Muito do que há hoje é material de arquivo de apresentações em estádios com captação de som muito precária.
Talvez a melhor delas - em termos de som e imagem - seja daquele show improvisado no terraço da gravadora Apple em 1969 que durou uns 40 minutos até ser interrompido pela polícia atendendo às queixas dos vizinhos pelo barulho. Mas aquela foi a última apresentação da banda antes do fim. O fim mesmo, definitivo.
A verdade é que alguns anos antes, a maior banda de rock do mundo chegou a cogitar uma interrupção por tempo indeterminado em suas atividades por causa das cansativas turnês e uma crescente insatisfação com a sonoridade que faziam.
A maior parte da carreira musical do grupo aconteceu num período tecnicamente ruim para os grandes concertos de rock e quando eles começaram a melhorar, a banda tinha desistido completamente de fazer performances ao vivo. A partir de 1967, os quatro rapazes de Liverpool descobriram as delícias de se gravar em um estúdio. E que estúdio! Nada menos que o Abbey Road de propriedade do maestro, arranjador e produtor George Martin e construído numa antiga catedral abandonada e com acústica perfeita. Em 1967, os Beatles também marcaram um ponto de virada em suas carreiras, quando conceberam O disco Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band.
Alguns anos antes, em 1964 , quando a Beatlemania havia ganhado o mundo e os Beatles chegaram aos EUA se apresentando na TV no lendário programa de Ed Sullivan - uma espécie de Sílvio Santos americano - surgiu a ideia da banda excursionar pelo país tocando em estádios para muita gente. Até aí tudo bem, não fosse pela péssima qualidade do som, quase sempre abafado pela gritaria das fãs ensandecidas.
Em 1965 John, Paul, George e Ringo continuaram com as retumbantes apresentações americanas e o problema persistia. Realmente era meio complicado ouvir um show dos Beatles. Nem eles mesmos conseguiam se ouvir. Depois da última turnê no Estado da Califórnia,os rapazes decidiram tirar férias e definir um novo rumo para a banda ou o próprio fim. Vale lembrar que os Beatles eram uma banda de canções deliciosamente fáceis, simples e pegajosas durante este período.
Ainda em 1965, o Fab Four entrou em estúdio para gravar o ótimo Rubber Soul, a primeira parceria com o produtor George Martin, o homem que mudaria para sempre os rumos musicais da banda com uma incrível transição do som fácil do Iê-Iê-Iê para algo mais elaborado.
O ano de 1966 já estava quase terminando quando os quatro se reuniram com uma decisão tomada: O fim das apresentações ao vivo. A justificativa era de que ninguém os ouvia de fato nos shows e queriam que as pessoas tivessem contato com sua música de um jeito diferente. Aquele ano de férias havia mudado muito a maneira como se encaravam como músicos e queriam produzir um álbum realmente audível. Fazer música para ficar, com maturidade nos arranjos e letras.
Ainda com a vibração de Rubber Soul e o psicodélico Revolver na mente e uma certa inspiração em discos conceituais como Pet Sounds dos Beach Boys, Paul discutiu uma certa ideia criativa com seus companheiros. Discos-conceito eram albuns que tinham uma função que ia além da comercial, eram quase temáticos e muito menos radiofônicos que os discos convencionais de carreira. Neste caso, Paul queria uma obra em que todas as canções estivessem ligadas...e o tema no caso, seria a história de uma banda...não de rock mas uma bandinha comum de fanfarras que tocam em desfiles.
Com milhões de LPs vendidos na carreira até então e uma marca que rendia royalties fantásticos, a gravadora não esboçou a menor objeção à idéia, e depois de 129 dias e aproximadamente 700 horas de gravação, o album foi lançado em 1 de junho de 1967 na Inglaterra e no dia seguinte nos Estados Unidos. "Sgt. Pepper" era algo jamais visto na indústria fonográfica, tinha uma sonoridade toda particular, que fazia junção do rock com arranjos de orquestra, efeitos sonoros, etc. num tempo em que as mesas de gravações dos estúdios não possuíam tantos canais para tal.
O album fala de pessoas comuns, desenhos infantis, circos mambembes, uma controladora de parquímetros, uma jovem fugitiva. Em "She's leaving home", Paul usa múltiplas gravações de um quarteto de cordas pra simular uma orquestra. Em "Within you without you", o músico indiano Ravi Shankar – pai da diva Norah Jones, toca um cítara.
A famosa rádio BBC chegou a banir "A Day In The Life" e "Being For The Benefit Of Mr. Kite!", a primeira por ter a palavra excitar numa das frases e a segunda pelo termo usado nas ruas para designar a substância heroína: “Henry The Horse”. Aliás, essa primeira canção censurada é a última do disco e com um último “acorde”, o som de um apito em uma frequência agudíssima de cerca de 15 Kilohertz que não pode ser ouvido por ouvidos humanos, mas caninos, sim. Uma alusão aos shows inaudíveis da beatlemania? Loucura, não? Mas falta a capa.
Referência para qualquer designer, a capa de Sgt. Pepper criada pelo artista plástico Peter Blake , mostra um funeral ( da própria banda ) com recortes de fotos de celebridades marcando presença na cerimônia de corpos presentes vivos em uniformes de fanfarra e como bonecos de cera e com os terninhos caretas de uma fase deixada para trás. Bob Dylan, Marlene Dietrich, Marlon Brando, Shirley Temple, Jesus Cristo e até o ocultista Aleister Crowler eram os convidados (Gandhi quase entrou na festa mas a imagem foi vetada pela gravadora EMI).
Aliás, a ideia imagética da assembleia de notáveis em capaz de discos se difundiu pelo mundo da música e da própria cultura pop, e a repercussão do disco encorajou artistas de todas as tendências a conceber seus próprios discos-conceitos pela aurora e decorrer dos anos 1970, como o manifesto sonoro da Tropicália ( em 1968 ), passando por Frank Zappa, Pink Floyd, Stevie Wonder, Caetano Veloso até Odair José.
É desnecessário dizer que o album conquistou a admiração do público que descobriria uma banda diferente da que conhecia e a crítica consagrou a dupla Lennon e McCartney como ícones do cancioneiro popular moderno; além de influenciar uma legião de artistas de todas as gerações.
Os Beatles provaram que poderiam ser músicos criativos capazes de criar uma obra relevante e madura artisticamente. Ter o seu próprio Sargent Pepper é uma expressão usada no Mainstream artístico para designar que um músico fez um disco maduro, ou cresceu como artista, fez um álbum que é seu divisor de água na carreira, o antes e o depois, a morte e o próprio ressurgimento. O Album Branco e Abbey Road viriam na esteira, mas aí já outra história.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.