O que aprendi com Conceição através de Olhos D'Água
Nascida numa comunidade da zona sul de Belo Horizonte, Conceição Evaristo é Mestra em Literatura pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela UFF.
Sua estreia na Literatura foi em 1990, com textos na série 'Cadernos Negros'. Com textos sensíveis, a autora vem fortemente se posicionando com orgulho perante sua origem afro-brasileira numa sociedade preconceituosa. Suas obras, como “Olhos D'Água", vem abordando temas sobre discriminação racial, de gênero e classe.
Abordar a literatura afro-brasileira é uma relevante contribuição, não só como objeto de estudo, mas também, vem ajudando a minimizar preconceitos. Sendo assim, se desvincula do discurso literário que a tempos expõe a mulher negra de maneira estereotipada e propõe uma visão renovada!
Ou seja, é a voz da verdadeira mulher negra que se faz ouvida!
Conceição e os olhos de sua mãe
Hoje eu quero falar de Olhos D'Água.
Um compilado de 15 contos nos quais Conceição nos traz um misto de sensibilidade e delicadeza, com histórias e dores de mulheres negras. Pobreza e desigualdade são temas que vem crescendo na literatura brasileira. Entretanto, Conceição veio tirando o monopólio do tema das mãos da ótica de homens, principalmente brancos.
“A cor dos olhos da minha mãe era a cor dos olhos d'água. Águas de mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície."
A violência exposta por Conceição
Violência é característica acentuada nos contos de Conceição Evaristo, sendo dividida como violência simbólica, moral e física. Além de nos fazer pensar sobre a identidade do mundo, sempre será possível questionar como as relações ocorrem na sociedade.
Ela não lembrava qual a cor dos olhos de sua mãe… Isso nos diz muito sobre como é difícil criar um filho, trabalhar e cuidar de uma casa. Por vezes são tarefas que nos atrapalham.
É difícil olhar verdadeiramente para o outro.
Em sua literatura de 'escrevivências', Conceição nos traz relações humanas que denunciam identidades que são marginalizadas e esquecidas pela sociedade. Além disso, o tema violência nas comunidades, que infelizmente é uma realidade, também é abordado em Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos.
Ana, Duzu e Maria
“Mesmo com toda dignidade ultrajada, mesmo que matassem os seus, mesmo com a fome cantando no estômago de todos, com frio rachando a pele de muitos, com doença comendo o corpo, com desespero diante daquele viver-morrer, por maior que fosse a dor, era proibido o sofrer ”
Ana Davenga, Duzu Querença e Maria são a personificação da violência, são contos que tem por intuito evidenciar essa questão. Esses contos nos lavam com o horror que pode suceder a qualquer mulher preta.
Tanto a favelada, a mendiga e a doméstica, são vítimas do pré-julgamento que, infelizmente, é muito comum.
A favelada, ao assumir uma relação com um traficante se torna submissa, o que nos faz pensar sobre o papel da mulher na sociedade e qual a importância dela.
Mas, Duzu é quem mais me choca! Com histórico de prostituição, abortos, abandono… Toda a sorte de um destino ruim e cruel. A sociedade não tem pena do que vê. Não há sentimento algum pelo que é visto! A gente nunca se pergunta qual a história detrás de uma pessoa em situação de rua...
Ps: Tem que ler com um lencinho, tá?!!
E ler sobre Maria… ah, a Maria… Racismo escancarado e preconceito! Nos enche os olhos d'água! Ver aquela mulher amorosa sendo julgada e virando mais uma vítima de violência de uma forma tão egoísta. Muitos de nós da pele preta, infelizmente, passamos por isso diariamente!
A violência contida nos contos é só um exemplo do que temos em comum com os personagens, a condição que nos é imposta! Temos nossas vidas comprometidas com a miséria humana, cada um de nós tem o poder de destruir e de ser destruído.
Conceição nos conta quantos filhos Natalina teve
Nessa narrativa, Conceição conta a história de Natalina!
Primeiramente, esse conto deixa escancarado o que muitas mulheres enfrentam! São abusos e estupros e, simplesmente, não podemos contar com ações governamentais que nos protejam.
Não há políticas públicas, nem igualdade social e, muito menos, medidas educacionais que realmente vêm a intervir na chamada “cultura do estupro”. Muitas vezes são as vítimas que precisam agir e a ação é, por muitas vezes, a violência.
O que sobressai também neste conto recai ao fato de que, em nenhum momento, Natalina é colocada no papel de vítima. Ao mesmo tempo em que rompe a expectativa da sociedade no que diz respeito à fantasiosa e idealizada imagem da mãe perfeita.
Natalina é, acima de tudo, forte!
A emancipação e a sexualidade da mulher
No conto Beijo na face, Salinda nos mostra que uma mulher negra não é mais o corpo que se entrega submisso ao prazer alheio!
Mesmo uma mulher casada deve ser dona da sua sexualidade! Assim, vemos Salinda, com suas múltiplas relações como indivíduo e os episódios de sofrimento e de subalternidade que ela experimenta enquanto mulher. Ao mesmo tempo em que deixa evidente as feridas, ao final do conto é conferido à protagonista uma possibilidade de emancipação.
“Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção era como deglutir a própria boca”
Salinda sai do armário!
Em Luamanda, diferente das personagens já citadas, é um conto onde um protagonista tem nas mãos as rédeas de sua vida e não depende economicamente de ninguém!
Ousada… Ela é livre! Uma mulher que depois de tantas violências (até mesmo sexuais) se descobre prazerosa de si… cheia de si! Parafraseando o próprio conto, Luamanda é mãe, amiga, companheira, amante e, além de tudo, conhecedora do próprio corpo!!
E com toda delicadeza e destreza possível, Conceição nos traz os riscos dessa emancipação em Cooper da Cida. Uma mulher envolvida em sua vida de responsabilidades profissionais e totalmente emancipada de tudo, que percebe que precisa retornar para si!
Um fato que na pós-modernidade é comum! São trabalhos que precisam ser entregues, horários a cumprir… putz! Às vezes não dá tempo nem de notar o tempo e por vezes a gente se perde, o que não é tão difícil assim, ainda que seja triste… É o mundo líquido do qual Bauman nos alerta tanto e, ainda assim, a gente tem uma enorme dificuldade de se desvencilhar!
E o homem negro?
Apesar da grande representatividade feminina, Olhos D’água também retrata as lágrimas dos olhos masculinos. Di Lixão, Lumbiá, Kimbá, Ardocas e Bica são a personificação do homem negro numa sociedade que ainda o vê como inimigo.
Em A gente ‘combinamos’ de não morrer, um combinado entre todos da pele não branca, me faz pensar em línguas e linguagens.
Sabendo que a cada 23 minutos, o sangue de uma pessoa preta é derramado! O combinado por muitas vezes não é cumprido mas, quase sempre isso ocorre pelas forças do racismo. Seja matando nossa pele, como matando a nossa linguística.
Intelectuais ao citarem o nome desse triste conto geralmente substituem o ‘a gente’ pelo ‘nós’, enquanto aquela famosa canção do Ultraje a Rigor utiliza o termo como “licença poética”.
A esperança resiste!
Apesar das histórias impactantes e tristes, Conceição deixa claro que sempre haverá esperança!
O livro se finaliza com a história de Ayoluwa! Ayo é a esperança de um povo sofrido, amargurado e que vive numa realidade cinzenta e sem cor… Esse conto nos aproxima da nossa própria criança… Aquela que todavia, vivia de pureza e alegria.
De maneira simbólica fica claro que se hoje vemos pessoas não brancas em ascensão, a resposta é a Ayo que existe em nós! Que Ayo viva e cresça entre o povo preto, afinal, “ela veio não com a promessa de salvação, mas também não veio para morrer na cruz!”.
Enfim…
Olhos D’água nos corta a carne… É uma navalha afiada que deixa nítida sua intencionalidade. Ninguém passa ileso!!
Imagem de capa - Publicação do Livro
Este artigo foi escrito por Roxanne Soares e publicado originalmente em Prensa.li.