O quê é que as personagens femininas de Elena Ferrante têm?
Quase invariavelmente, os leitores de Elena Ferrante dizem que a partir do primeiro capítulo lido, a imersão na história é espantosa. É ler as 1700 páginas da tetralogia napolitana e querer mais e mais — o que fica depois de terminar um livro de Ferrante é uma síndrome de abstinência. Assim como nos vemos enclausurados pela vida de Mare Sheehan (Kate Winslet) na recente produção seriada da HBO. E também nos conflitos entre as mulheres de Big Little Lies ou nos relacionamentos de Issa (Issa Rae) e Molly (Yvonne Orji) em Insecure.
O que sugere é que as narrativas em torno de personagens femininas fortes e marcadas por vários dilemas tendem a responder, de certa forma, a um imaginário simbólico ainda muito comprometido pelos ditames do universo patriarcal. E na literatura de Elena Ferrante, com sua mágica hipnotizante que traça paralelos com obras seriadas, a resposta sublinha uma instância que toca a sensibilidade contemporânea: a subjetividade.
O desencontro com o próprio “eu” e o mundo exterior, gerando um mal-estar totalmente epifânico como diria Clarice, é o que Lila chama de desmarginação. Uma angústia que a preenche por toda a saga napolitana, em uma espécie de ausência de si mesma. Os contornos se diluem e lhe parece “se desmanchar como fio de algodão”. Em uma fragilidade de ser e estar no mundo como mulher, Lila e todas as figuras femininas de Ferrante dialogam com essa perda ou, até mesmo, uma certa ausência de identidade.
O eco da maternidade
Em Dias de Abandono, Olga perde o marido e mergulha em um estado de apagamento da subjetividade feminina. O tempo, a energia e o corpo gastos em uma doação exaustiva que avança ao esgotamento; a maternidade não é aquele oceano imperturbável em que barcos dançam pela água silenciosamente e os raios solares tocam na pele bronzeada.
O primeiro livro de Ferrante, A filha Perdida, transita entre a maternidade e sentimentos mais complexos quando se pensa em conflitos de geração . As filhas devem, em um puro ato universal, serem reflexos da mãe? Na tetralogia, Lenu foge a todo momento da figura materna: em hipótese alguma ela quer ser como ela.
Mas é em Um Amor Incômodo que a autorepresentação da perspectiva da mãe sobre a filha alcança a máxima narrativa. A construção tanto da mãe quanto da filha não são muito bem delineadas; até porque Delia narra construções que desencadeiam múltiplas hipóteses sobre sua mãe Amalia. Inclusive todos os pontos de violência que as duas sofreram - pelas mesmas figuras masculinas - relacionam com a narrativa de ausência que conduz todas as protagonistas femininas de Elena Ferrante. É uma perda de si epifânica que oculta a noção de identidade.
Desafetos e desarranjos
“Eu escapei, e continuo escapando, dentro destas linhas que têm o intuito de me dar uma história, mas, no entanto, são nada, nada meu, nada que tenha realmente começado ou sido concluído: somente um nó emaranhado, e ninguém, nem mesmo ela que neste momento está escrevendo, sabe se contém o fio certo para uma história ou é meramente uma confusão ríspida de sofrimento, sem redenção”.
Logo na primeira página de A Vida Mentirosa dos Adultos, Giovanna menciona que sobreviveu. O livro acompanha a personagem no período talvez mais perturbador da existência feminina: a adolescência. Além das transformações, indagações e, sobretudo, a exploração de si mesma, Giovanna sofre com a separação dos pais. É um confronto entre o desarranjo dos afetos e a própria subjetividade que emerge.
E em um movimento de autoconhecimento como mulher, influenciadíssimo pela descoberta da tia Vittoria, Giovanna desdobra várias armadilhas até então indissociáveis do mundo que sempre foi mostrado a ela. No limite entre o real e o imaginário, ela se reconcilia com o ditame estético expressado pela mãe ao pai: “ela está ficando feia igual a Vittoria”.
No mesmo barco
As perdas femininas narradas em todos os livros de Elena Ferrante dialogam intimamente com “segredos que se sabem só quando se é mulher” — como bem confessa Lila a Lenu. Essa superfície de ausência, que preenche todas as protagonistas, na verdade, é o vazio de algo que foi arrancado por seus companheiros masculinos ou pela própria ordem que reduz a significância feminina.
Leda, em A Filha Perdida, em um desespero de se reencontrar com a camada da sua existência, foge por um ano deixando suas filhas. Lenu, em História de Quem Foge e Quem Fica, após engravidar de suas duas filhas e não ter nenhum tipo de ajuda do marido, as trata como um impedimento dela seguir as suas vontades e desejos pessoais. Em uma forma literária brilhante de múltiplas denúncias da violência patriarcal, Elena Ferrante encara a potencialidade feminina como antídoto.
Este artigo foi escrito por Laís Maciel e publicado originalmente em Prensa.li.