O que são as Finanças Regenerativas (ReFi)? Parte I
A primeira vez que tive conhecimento do termo ReFi foi enquanto pesquisava sobre a iniciativa Crypto Commons.
Após algum tempo de contato com os membros do Hub de inovação da Crypto Commons, que foram muito pacientes em me explicar o básico, fui atrás de saber mais por conta própria.
Após pouco mais de um mês de pesquisa sobre o tema, aqui estou eu tentando explicar o básico para você, leitor da Prensa.
Nesta primeira parte do texto apresento o termo e algumas de suas aplicações atuais, na segunda vamos trazer a discussão para o Brasil e apresentar algumas propostas.
Finanças Regenerativas
Simples e direto: são iniciativas que visam contribuir para um uso mais sensível e responsável dos recursos naturais através de ferramentas econômicas e financeiras para regenerar ou conservar a natureza.
Uma das fundamentações teóricas das ReFi vêm da produção intelectual de autores como Humberto Maturana e John Fullerton.
O termo fundamental da contribuição de Maturana é o conceito de autopoiesis, que descreve os processos de criação e manutenção internos aos seres vivos.
Daí a ideia de potencializar iniciativas que envolvem regenerar os espaços e processos para que a vida continue a acontecer no planeta.
Já do lado de Fullerton, que é gestor financeiro, vem a ideia de operar a transição para arranjos econômicos mais sustentáveis a partir de novos modelos de financiamento.
Tais ideias assumem forma prática de maneira multidisciplinar originando-se da arquitetura, economia, filosofia, finanças e das DeFi no contexto da tecnologia blockchain.
Seguindo a tendência multidisciplinar, que caracteriza a inovação em nossa época, as ReFi são baseadas em princípios ecológicos, econômicos e sociais que variam entre a reforma (na forma da transição gradual) e a ruptura total.
Vejamos alguns casos práticos e atuais de aplicação das ReFi.
Casos de sucesso
Vamos conhecer três tipos de casos, o primeiro relativo aos protocolos DeFi voltados para finanças regenerativas, o segundo relativo ao mercado financeiro e o terceiro que integra mercado financeiro, DeFi e ReFi.
Graças ao seu baixo custo e acessibilidade, os protocolos DeFi têm sido um dos principais espaços do experimentalismo econômico e financeiro na atualidade.
Entre os diversos protocolos que existem, três são especialmente representativos desta diversidade.
O primeiro torna o mercado de carbono mais acessível ao cortar atravessadores permitindo a tokenização dos créditos de carbono emitidos diretamente pelos produtores.
O protocolo Toucan pode ser considerado moderado uma vez que oferece ferramentas mais sofisticadas para uma iniciativa já existente.
No Toucan você pode tokenizar, negociar e fazer staking de créditos de carbono de forma simples e barata.
O segundo, Regen Network, facilita o encontro entre as mais sofisticadas formas de uso de recursos naturais e os próprios agricultores através de diferentes metodologias de análise dos processos produtivos.
Na Regen Network você pode atuar como investidor, produtor e pesquisador, requerendo, financiando ou elaborando novas metodologias para diminuir impacto, aumentar produção e equilibrar a relação com o planeta.
O terceiro protocolo a ser destacado é tão inovador quanto irreverente ao utilizar o formato de arte mais hypado do momento, os NFTs, para financiar a conservação ambiental.
O Projeto Ark, tem parcerias de peso como as redes Chainlink, Polygon e The Commons Stack, além de ser uma iniciativa que surge da cooperação entre a WWF e Carbonbase.
Acerca da presença das ReFi no mercado financeiro, a tendência são iniciativas focadas em construir empresas e instituições com estrutura proprietária flexível.
O foco destas empresas e instituições é priorizar seu objetivo ao invés do lucro de acionistas e, desta forma, proteger sua própria existência.
Estamos falando de instituições que além de gerar receita, que possibilitam sua existência e reprodução, geram algum tipo de impacto positivo na regeneração do planeta.
Um caso de sucesso que merece destaque é o estadunidense Purpose Evergreen Capital que oferece financiamento desafiando modelos tradicionais.
A forma que o referido fundo encontrou de desafiar os velhos modelos é o financiamento sem aquisição de direito a voto, outra forma, mais importante, são critérios de análise que focam em impacto e resiliência no longo prazo, e não em lucro no curto.
Para além das iniciativas já existentes no mercado financeiro e dos protocolos das DeFi, existem tentativas de integrar as soluções de ambas fontes em um único ambiente.
A principal destas tentativas, a única que tive acesso em minhas pesquisas, foi as
Comunidades Autônomas para Economia Regenerativa (Autonomous Communities for Regenerative Economies-ACRE).
ACRE DAO é uma aplicação web3 desenvolvida pela Acre of America, uma consultoria em investimentos de impacto ambiental no sentido de aproximar a tecnologia da produção rural.
Mais precisamente, o que o ACRE DAO busca é aproximar as ReFi das DeFi através de uma ferramenta de governança para facilitar a organização e financiamento de iniciativas de impacto positivo na produção agrícola.
Por hora o token serve como um ingresso para a comunidade (que diga-se de passagem não para de crescer), mas existem planos para implementar novas utilidades ao token.
A comunidade é composta de produtores, investidores, empreendedores e intelectuais que contribuem entre si para criar, organizar e financiar iniciativas de regeneração.
Para uma descrição mais precisa e abrangente da atuação da Acre of America e do ACRE DAO, o leitor pode ouvir a entrevista da gestora Kianga Daverington no podcast Investing in Impact.
Embora sejam o que há de mais sofisticado no ambiente das ReFi, os casos de sucesso acima apresentados são apenas exemplos de como a economia, tecnologia e boas ideias podem contribuir para melhorar nossa relação com o planeta.
Se quisermos dar o passo seguinte para entender como as ReFi já estão presentes na realidade brasileira, é necessário dar um passo atrás para que possamos diferenciar tais iniciativas daquelas já presentes no mercado financeiro tradicional.
O núcleo conceitual
A mudança proposta pelas ReFi não diz respeito ao impacto humano no planeta de forma isolada, mas em uma perspectiva holística que abrange as mais variadas causas deste impacto.
Assim ela se distingue do chamado “capitalismo verde” ou do mercado de carbono que em geral abrangem iniciativas que realocam o dano causado.
Ao mesmo tempo trata-se de uma abordagem que não precisa de uma fundamentação exclusiva dentre as atuais fontes normativas da teoria política.
Isso implica que ao passo que podemos descrevê-la a partir de fontes normativas como socialismo, anarquismo e libertarianismo, etc, nenhuma dessas fontes é exclusivamente necessária.
É necessário concordar apenas com princípios gerais de descentralização, justiça produtiva e responsabilidade geracional.
O núcleo conceitual das ReFi é a oferta de mudanças sistemáticas para problemas sistemáticos no sentido prático do empoderamento dos agentes e operacionalidade das mudanças.
Para isso utiliza-se as mais sofisticadas ferramentas econômicas, financeiras e da tecnologia para facilitar o financiamento e a governança das iniciativas de regeneração.
A demanda para tal tipo de oferta surge da percepção de que o aspecto mais complexo da viabilização de iniciativas de impacto social de longo prazo diz respeito ao financiamento (sem sequestro) e à governança.
Isso surge porque a autonomia, econômica e política, é uma demanda indiscutível de qualquer movimento de ruptura de paradigmas.
Principalmente quando falamos sobre paradigmas que atualmente beneficiam elites econômicas e políticas no Brasil e no mundo.
A ironia de ser ao mesmo tempo um dos maiores produtores de alimentos do mundo e estar no mapa dos países assolados pela fome coloca o Brasil no epicentro da demanda pelas ReFi.
Na parte II deste texto vamos trazer a discussão para o Brasil, expor alguns exemplos já em atuação e esboçar algumas possibilidades passíveis de serem exploradas.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.