O ruim, o mau e o virulento
O populismo caracteriza-se pela convocação das massas através de discursos identificadores de um inimigo comum, normalmente propagados por uma minoria política. O suposto culpado é responsável pela posição subalterna dessas mesmas massas, causador de um grande mal para toda aquela sociedade. Assim como um vírus mortal, espalha-se através da fala e, mais importantemente, da fala sem discernimento. Na pandemia da Covid-19, assistimos constantemente pessoas que possuem acesso a informações recebendo fake news e não conseguindo discernir a veracidade daquele ‘‘fato’’ transmitido por um terceiro. A internet nos possibilitou o acesso a diversas ‘‘verdades’’, mas ela não pode substituir a verdadeira educação, aquela que fornece ferramentas para que possamos questionar criticamente e, para além disso, distinguirmos a verdade da mentira, o bom do mal. Tal dicotomia também é presente no populismo. O contato com o outro se torna uma substância literal, tanto na disseminação de um vírus quanto na disseminação do populismo como ideologia. Ambos apresentam um ‘‘inimigo’’ comum – no caso do populismo, pode ser o imigrante, o negro, o judeu, o muçulmano, o exército da salvação. No caso do vírus, aqueles vistos como maiores propagadores também fazem parte de um estereótipo construído. O ‘‘outro’’, em toda a sua alteridade, é definido como sujo, nojento, inferior, e, portanto, passível de contaminar outros com seu estilo de vida sujo, nojento e inferior.
Após uma equiparação do terrorismo ao câncer, Ronald Reagan declarou que: 'Essa barbárie (terrorismo) é abominável, e todos aqueles que apoiam, incentivam e lucram com ela são abomináveis. Eles são bárbaros'. Dessa forma, Reagan aponta uma importante tradição interpretativa na experiência ocidental: a inscrição do outro como o bárbaro que se opõe ao eu 'civilizado', uma caracterização que desempenhou um papel vital na constituição da identidade da América e do Novo Mundo. É bem ilustrado por Mercator, que racionalizou sua representação cartográfica do mundo argumentando que: ‘’Aqui [Europa] temos o direito de Laures, a dignidade da Religião Cristã, as forças de Armes [...] Além disso, a Europa administra todas as Artes e Ciências com tal destreza, que para as invenções ela pode ser verdadeiramente chamada de Mãe. Ela tem todas as formas de aprendizado, enquanto outros países são, todos, inundados com a barbárie.’’ O "bárbaro" invoca conotações que podem ser alinhadas com o câncer, sugerindo que, embora cada representação distinta tenha suas próprias implicações peculiares, cada uma é energizada por preocupações morais semelhantes às invocadas pela dicotomia entre o normal e o patológico; preocupações morais que naturalizam o self populista (como normal, saudável, civilizado ou igualmente positivo) ao estranhar o outro (como patológico, doente, bárbaro ou igualmente negativo). Na posição do alienado, poderíamos colocar o herege, o pagão, o louco, o imoral, o queer, o doente... as possibilidades são quase infinitas. Cada um tem sua própria compreensão e coloração, compondo uma rede de tropos cujas avaliações combinadas constituem uma posição passível de ocupação por qualquer uma de várias identidades. Em um momento ou outro, o discurso europeu e americano inscreveu mulheres, a classe trabalhadora, europeus orientais, judeus, negros, africanos, árabes, loucos, asiáticos, Oriente, Terceiro Mundo, terroristas e outros por meio de narrativas que descreveram suas identidades como inferiores, muitas vezes em termos de multidões ou hordas (às vezes passivas, outras vezes ameaçadoras). Sucessoras a essas descrições, estão as qualidades do ‘‘bárbaro’’ como desprovido de moral, cultura, infectado com doenças, carente de indústrias, incapaz de realizações, propenso a indisciplina, inspirado pela emoção, levado pelas paixões, endividado com as tradições e, sobretudo, tudo o que 'nós' não somos. O 'nós', entretanto, raramente é articulado em seus próprios termos, sem associações negativas. Etienne Balibar argumentou que o racismo, por exemplo, tem a função de assegurar uma identidade nacional falha: ‘‘A identidade racial-cultural dos 'verdadeiros nacionais' permanece invisível, mas é inferida (e assegurada por) seu oposto, a suposta visibilidade quase alucinatória dos 'falsos nacionais': negros, indígenas, judeus, imigrantes.’’
A pandemia do Coronavírus evidenciou a mentalidade populista de ‘‘nós versus eles’’, identificando a China, asiáticos e descendentes em geral, comunistas e outros como provenientes de um mesmo mal conspiratório, almejando destruir o estado nacional (ou, salubre) que nos encontrávamos antes da disseminação do vírus maligno. Esse discurso acaba por se tornar esquizofrênico, já que por um lado culpabiliza ‘‘o outro’’ pela calamidade que vivemos, e, por outro, tenta negar a gravidade da situação através do discurso de estarmos passando ‘‘apenas por uma gripezinha.’’ É necessário resgatar a educação como propósito combativo de narrativas prejudiciais, mas mais importante, é necessário ensinar o reconhecimento do que são ‘‘narrativas prejudiciais’’ para que o conceito não se torne mais uma arma arbitrária do populismo.
Imagem de capa - Diversas mãos levantadas, com palavras como ''populista'', ''demagogo'' e ''ditador'' em destaque
Este artigo foi escrito por Amity Dystyler e publicado originalmente em Prensa.li.