O samba ou a configuração da identidade afro-brasileira
Resumo
O presente artigo pretende apresentar um aggiornamento ao debate interdisciplinar entre Filosofia e antropologia social e cultural por meio dos temas da história (afro-brasileira) e da música (samba) para, a partir destas referências, esboçar e demonstrar uma suposta identidade afro-brasileira. Para tanto, o presente texto se valerá de dois elementos presentes na obra do pensador Stuart Hall, quais sejam, “África” e “resistência” e, dentro desses dois polos, apresentará o debate constituidor da passagem da identidade brasileira em afro-brasileira do século XVI até o século XX.
Palavras-chave: Estudos Culturais; Samba; Afro-identidade; Resistência; Tia Ciata.
Introdução
O texto que aqui se inicia surgiu da necessidade de demonstrar os resultados de uma pesquisa interdisciplinar entre História da música popular brasileira e Filosofia para o componente curricular História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
Na confecção do texto, que pretende demonstrar quando o samba configura uma provável identidade nacional, se fará necessário amparar tal pesquisa, sobretudo, por uma metodologia filosófica qualitativa de exegese e interpretação textual de autores e artigos brasileiros e estrangeiros que, de alguma forma, se debruçaram e debateram o tema do samba e da identidade.
Para tanto, o presente artigo partirá do elân dos estudos culturais ao explicar o que significa o termo “África” avançando até o sentido do termo “resistência” presentes na obra do pensador Stuart Hall no intuito de responder uma questão realmente cara à antropologia cultural e social: quanto o samba contribui para a construção de uma suposta identidade afro-brasileira? Eis a intenção da presente atividade.
1. O Trabalho escravo como impedimento ao desenvolvimento cultural afro-brasileiro
O presente artigo pretende demonstrar e discutir o que produz um povo quando não é brutalmente escravizado e como esta produção cultural, a posteriori, contribui para a configuração de uma identidade brasileira, ou ainda, afro-brasileira. Para tanto, a presente pesquisa demonstrará alguns elementos históricos da cultura africana no Brasil, esboçará de modo conciso como o elemento cultural denominado “samba” contribuiu para a construção e representação da imagem do homem histórico dito afro-brasileiro e, por fim, apresentará o exemplo clássico e emblemático de Tia Ciata.
Desta forma, vale recordar que é uma generalidade associar a presença do africano, e portanto, do negro, no Brasil à escravidão e isso é confirmado, notadamente, pelo filósofo Stuart Hall, por exemplo, quando este explica que o próprio termo África, enquanto criação moderna, liga-se diretamente a processos históricos de diversos indivíduos ou ainda, diversos povos que foram escravizados, como é possível observar na passagem a seguir:
“‘África’ é, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas, cujo principal ponto de origem comum situava-se no tráfego de escravos.” (HALL, 2003, p.31)
Por continuidade, outra fonte que corrobora e associa o termo “África” a indivíduos escravizados, é um importante texto intitulado por História geral da África e, mais precisamente, no volume V, que tem por subtítulo África do século XVI ao XVIII. Neste livro, por exemplo, é possível ler que:
“No Brasil, durante esses dois séculos, são os escravos africanos que garantem, integralmente, a produção de açúcar para a exportação.” (OGOT, 2010, p. 116)
Ainda no tema da escravidão, pode-se ler neste mesmo livro sobre a história dos africanos no Brasil, o que poderá ser verificado na citação a seguir:
No ano de 1798, em uma população de 3.250.000 habitantes, 1.998.000 pessoas eram de origem africana, dos quais 1.582.000 eram escravos.
Em 1872, aproximadamente 5,8 milhões de indivíduos, em uma população total de 9,9 milhões, eram de origem africana, entre eles, 1,5 milhões ainda eram escravos 47.
Em outras palavras, a população de origem africana representava 61,2% da população total do Brasil em 1798 e 58% em 1872. (OGOT, 2010, p. 116)
Estes dados aqui elencados servem para demonstrar, explicar e confirmar que a atividade do indivíduo negro no Brasil nos primeiros séculos do descobrimento deste mesmo território se resumia, exclusivamente, à atividade do trabalhador escravo, isto é, trabalho sem qualquer forma de remuneração ou respeito à liberdade e individualidade dos atores envolvidos neste perverso processo. Esta condição de sub-humanidade, portanto, lhes impedia o desenvolvimento cultural de forma plena.
O relator da pesquisa organizada pela UNESCO, Ogot (2010), explica, por fim, que no Brasil:
“No século XVIII, enquanto a forte expansão no mercado do ouro atraiu vários negociantes e capitalistas do setor de mineração, a produção efetiva permaneceu, na prática, dependente do trabalho dos escravos.” (OGOT, 2010, p. 116)
Desta forma, fica claro qual era o lugar e função dos negros vindos de África no território brasileiro, pelo menos no século XVIII, como é exemplarmente demonstrado pela pesquisa elaborada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
No entanto, o que produziu o negro no plano cultural, no Brasil, dentro e fora dos terreiros de candomblé, – religião e liturgia comumente associada a estes povos vindos de África e residente neste território – quando findo, parcialmente, o processo perverso de exploração étnico-racial? A resposta a esta questão se encontrará, naturalmente, na próxima secção deste artigo.
1.1. O samba como representação da identidade afro-brasileira
Para o autor Alves (1976) estudioso da africanologia, por exemplo, o samba é algo que se perde nas raízes da cultura africana (ALVES, 1976, p. 13).
Por sua vez, para Mendonça (2012), o samba é sinônimo de dança de negros (apud ALVES, 1976). Todavia, um modo de aprofundar o sentido do termo aqui evocado, a saber, o samba, é retornar, diretamente ao precioso livro de Renato Mendonça, qual seja, A influência africana no português do Brasil, onde se lê, por exemplo, que:
A palavra samba, do étimo quimbundo/quicongo kusamba, significa rezar, orar para os deuses e ancestrais, sempre festejados com danças, cânticos e músicas, celebrações que certamente eram vistas com estranheza e de caráter lúdico pela sociedade católica circundante. Contagiado pela cadência rítmica e gestual da dança, o que antes era dança de negros foi esvaziado do seu conteúdo religioso original e o samba-oração negroafricano foi apropriado na categoria de gênero musical-dançante para se tornar mundialmente reconhecido como a mais autêntica e representativa expressão da musicalidade brasileira. (MENDONÇA, 2012, p. 26)
Desde que os negros aqui aportaram, a preexistência do samba já se fazia presente em terreiros de candomblé, por meio dos ritos africanos como parte da doutrina erudita e religiosa daqueles indivíduos (SIQUEIRA, 2012, p. 100). No entanto, Siqueira (2012), muito mais do que Mendonça (2012), aprofunda tal fato histórico ao analisar em termos musicais, diversas partituras contendo as tais músicas em louvor aos deuses africanos e, portanto, ancestrais. O autor, inclusive, explica que num samba intitulado Xangô Oxum se encontra: “o compasso binário mas, dessa vez, em 2/4, com a subdivisão em semicolcheias, ou seja, subdivisão com quatro articulações em cada tempo.” (SIQUEIRA, 2012, p. 76).
Autores como Lopes e Simas (2012), por sua vez, apresentam larga bibliografia para explicar o significado do termo “samba”: para estes autores e no livro intitulado por Dicionário da história do samba, especificamente, pode-se ler, por exemplo, que o samba já estava presente na língua portuguesa desde o século XIX e que:
O vocábulo “samba” foi primeiro definido, em 1888, como “uma dança popular; sinônimo de xiba, cateretê, baiano, fandango, candomblé etc” (Soares, 1954); em 1989, foi considerado uma “espécie de bailado popular” (Beaurepaire-Rohan, 1956) ou simplesmente “um bailado popular; uma dança de negros”. (FIGUEIREDO, 1925) (SIMAS e LOPES, 2020, p. 247).
Estas são, de fato, apenas algumas das referências da realmente vasta lista de evocações ao tema presente no verbete “samba” na obra dos autores Lopes e Simas aqui já mencionada.
O termo samba, tal como a historiografia, a musicologia e a africanologia o compreende na modernidade, é rico em referências e vasto em interpretações. Há tanta dificuldade em dizer o que de fato, musicalmente significa “samba” que, didaticamente, costuma-se dizer que há diversas variedades deste gênero musical desde o marco Pelo telefone1 até o que se tem produzido nos tempos hodiernos. É justamente por isso que Cabral (1974, p. 22) reproduziu o seguinte diálogo na obra As escolas de samba:
A discussão, travada numa das salas da SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e escritores de Música) em fins da década de 60, foi proposta por mim com a pergunta: qual é o verdadeiro samba?
DONGA: Ué. Samba é isso há muito tempo
O chefe da polícia
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar.
ISMAEL SILVA: Isso é maxixe.
DONGA: Então, o que é samba?
ISMAEL:
Se você jurar
Que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é
Para fingir mulher
A orgia assim não vou deixar
DONGA: Isso não é samba. É Marcha. (apud SIQUEIRA, 2012, p. 118)
No entanto, quando, de fato, o samba contribui para a construção de uma suposta identidade afro-brasileira? Não existem respostas fáceis quando o que está em pauta é um processo histórico, humano e também filosófico a um só tempo perverso e complexo. Aqui, o que se coloca, não são abstrações na linguagem e sim vidas humanas. A melhor resposta a este problema, todavia, está presente na obra de Siqueira (2012), quando o mesmo explica que:
O samba foi instrumento de idealização da identidade nacional, inclusive por suas raízes profundas ancoradas em uma sociedade onde parte expressiva da população não tem grande importância. A cultura negra dá, assim, parâmetros de sociabilidade com a música, ou seja, através dela. (SIQUEIRA, 2012, p. 242)
É bastante problemático, todavia, o processo que não reconhece a importância do negro como lugar de formação de uma suposta identidade nacional por meio da herança do samba. Desde o século XIX que, para aqueles que buscaram remontar uma identidade nacional a partir de padrões e parâmetros europeu e branco, o reconhecimento da diversidade cultural e, mais precisamente, na sua tonalidade de matiz africana sempre fora algo bastante controverso. A solução da exclusão do negro enquanto representante da identidade nacional por conta da experiência histórica negativa do Haiti2 em tais projetos de Brasil, de fato, pode ser confirmada na leitura de obras como Onda negra, medo branco de Azevedo (1987) com muito mais detalhes. (AZEVEDO apud SIQUEIRA, 2012, p. 211).
O lugar do negro na história do Brasil, inclusive, como já demonstrado na primeira secção deste artigo e cabendo aqui uma reafirmação, uma vez que o que aqui se investiga são os elementos constituidores da tal identidade afro-brasileira, é aquele denunciado no texto do livro Samba e identidade nacional, qual seja:
“O negro veio ao Brasil para ser escravo e, portanto, dentro da óptica cultural da elite, oriunda do colonizador, não poderia participar do processo de formação da cultura brasileira.” (Ibidem, 2012, p. 49).
Ora, justamente por isso que Pierre Verger (1987) recordou em sua obra Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos dos séculos XVII a XIX que o ministro da fazenda Ruy Barbosa mandou queimar todos os registros do tráfico negreiro para dificultar a pesquisa e apagar esta página vergonhosa da história brasileira. (apud SIQUEIRA, 2012, p. 61).
No entanto, levando em consideração a definição para o termo “identidade” proposto por Lopes e Simas, isto é, conjunto de características que distinguem e individualizam um ser, um objeto, um grupo, uma coletividade etc (LOPES e SIMAS, 2020, p. 145), fica realmente claro e demonstrado que o samba, enquanto reflexo da atividade cultural de negros e para o povo brasileiro, é a sua mais fiel e exata representação identitária.
1.1.1. Tia Ciata ou o samba como resistência cultural
O caso Tia Ciata (1854-1924) é realmente emblemático. Dizer desta forma, é o mesmo que remontar um símbolo de resistência e astucia, estratégias das quais os negros desde sempre precisaram descobrir para sobreviver à barbárie do racismo, da escravidão e do colonialismo.
O fato de que o samba é um produto da presença da cultura africana no Brasil se confirma com a ação de Tia Ciata. O autor Alves, por exemplo, explica que:
“Ernesto Joaquim Maria dos Santos, mas conhecido nas rodas do samba por Donga, nasceu a 5 de abril de 1891, vivendo e vibrando de samba e candomblé na casa de Tia Ciata, compôs a música do primeiro samba ‘Pelo telefone...’” (ALVES, 1976, p. 25)
Ora, o mérito de Tia Ciata repousa em congregar na Pequena África, isto é, na Praça Onze e no ano de 1917 aqueles que mais tarde seriam os responsáveis pelo primeiro samba registrado na Historia da música brasileira. Desta forma, músicos como Ernesto Joaquim Maria dos Santos, Mauro de Almeida (ALVES, 1976) e tantos outros famosos sambistas, frequentavam a sua roda de samba bem como o seu terreiro de Candomblé.
A tal praça Onze recebeu esta alcunha, qual seja, Pequena África, porque o escritor Roberto Moura, baseado numa afirmação de Heitor dos Prazeres, disse que a tal praça era como uma África em miniatura (LOPES e SIMAS, 2020). Fora nesta região, contudo, no estado do Rio de Janeiro, onde se reunia toda a comunidade baiana, que no ano de 1970 criaram aquela que mais tarde seria reconhecida como a primeira gravação histórica do primeiro samba brasileiro.
O termo “samba” segundo Maria Thereza Mello Soares (1985, p. 45) “é um verbo conguês da 2ª conjugação, que significa ‘adorar, invocar, implorar, queixar-se, rezar’” (apud SIQUEIRA, 2012, p. 18) e era exatamente isso o que Tia Ciata fazia com os seus iguais, vindos da Bahia para o Rio de Janeiro, em meio às liturgias comuns ao povo de santo.
O samba, pois, surgiu dentro de um terreiro de candomblé, na casa de Tia Ciata e é exatamente por isso que tal expressão musical carrega uma dupla referência afro-descendente: ora por que o samba, de fato, é uma palavra de origem africana, como já explicado no parágrafo anterior, que carrega em si um sentido de “oração”, ora porquê Tia Ciata, mulher iniciada nos segredos do Candomblé, corroborava a cultura africana durante a sua atividade enquanto mãe de santo, exatamente adorando, invocando, implorando, queixando-se e rezando aos seus orixás.
Por conta da sua relação com o candomblé e de como a sua influência propiciou a criação do samba, Duarte (1969, p. 40) disse que “Tia Assiata3 é um produto do meio” (apud SIQUEIRA, 2012, p. 109). Todavia, fato pouco conhecido é aquele que diz que Tia Ciata reclamou, também, a autoria coletiva do samba Pelo telefone (SIQUEIRA, 2012).
Neto (2017), por sua vez, apresenta ao leitor brasileiro na sua importante obra intitulada por Uma história do samba – as origens, ainda no volume I, uma interessante biografia da autora aqui evocada. No seu texto, é possível ler, por exemplo, que:
O esposo traído ficou amuado e decidiu repassar os documentos do rancho as mãos de outra venerável figura entre os conterrâneos da comunidade baiana no Rio de Janeiro: a doceira e cozinheira Hilaria Batista de Almeida, negra de quarenta anos de idade, dona de um tabuleiro de quitutes armado na rua da Carioca e mais conhecida como Assiata de Oxum — ou, como passaria a história, Tia Ciata.
Natural de Santo Amaro da Purificação (BA), iniciada no candomblé por Tio Bamboxê, a xar[a de Hilario Jovino era Iyá Kekeré (“mãe-pequena”, no idioma ioruba) do terreiro de João Alaba, cargo hierárquico que a colocava na condição de auxiliar direta do prestigioso pai de santo. Entre as obrigações e prerrogativas dessa ascendência religiosa, cabiam-lhe a orientação espiritual dos filhos de santo e a prescrição dos banhos rituais de iniciação das noviças. (NETO, 2017, 41)
Desta forma, por meio da citação há pouco apresentada, cumpre-se elemento realmente importante nesta presente pesquisa, qual seja, a lacuna biográfica sobre a importante figura de mãe de santo santo-amarense aqui estudada.
A presença histórica de Tia Ciata representa, sobretudo, um lugar de resistência na cultura afro-brasileira no sentido de que fala Lopes e Simas, no seu clássico Dicionário da história social do samba, isto é:
RESISTÊNCIA. Uma das acepções do vocábulo “resistência” é “recusa a submeter-se a vontade de outrem; oposição, reação” (cf. Houaiss e Villar, 2001) Florescida no contexto da opressão escravista e desenvolvendo-se em condições absolutamente adversas, a história do samba pode ser vista como uma sucessão de episódios de resistência.
Assim, vemos em Sodré (1979: 13) o samba indicado como “um aspecto da cultura negra — continuum africano no Brasil e modo brasileiro de resistência cultural” que “encontrou em seu próprio sistema recursos de afirmação da identidade negra”.
No mesmo texto, o autor rejeita os discursos que procuram explicar a sobrevivência do samba como “consentida”, como “simples matéria para um amalgama cultural rebatizado de cima para baixo” (ibid). Esse posicionamento ecoa em Ramos (2008: 415), onde se lê que sutilmente o samba “impôs sua cultura e sua forma de criar e se expressar”.
Assim, “possibilitou que a força negra se manifestasse e penetrasse em cada canto da alma brasileira”; e chegou ao ponto de “subverter a cultura europeia” e resistir, como resiste até a atualidade à indústria globalizada do entretenimento.
Em Sodré (1979: 42) era destacada a “posição reativa” de vários sambistas veteranos e mais jovens às “receitas estereotipadas da indústria do disco e do carnaval-espetáculo”, a qual ficaria “evidente na maneira negra de compor o samba”. (LOPES e SIMAS, 2020, p. 242)
A necessidade em reproduzir uma citação tão extensa repousa no fato de que a mesma demonstra todo o campo e, portanto, a extensão que ocupa o termo “resistência” em relação ao problema do negro no Brasil e, de modo particular, relativo na atividade de Tia Ciata.
Ora, se é uma fato que a história do samba pode ser vista como uma sucessão de episódios de resistência (LOEPES e SIMAS, 2020), a presença de Tia Ciata e de outros negros e sambistas na Pequena África, é a mais perfeita demonstração de um destes episódios de resistência. Além do mais, sendo o samba um tipo de oração, como já explicado anteriormente, de fato, ele “possibilitou que a força negra se manifestasse e penetrasse em cada canto da alma brasileira” (LOPES e SIMAS, 2020).
Em contrapartida, Hall (2003) diz que “A cultura popular não é, num sentido ‘puro’, nem as tradições populares de resistência a esses processes, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transforações são operadas” (HALL, 2003, p. 249).
Desta forma, corroborando a fala do pensador aqui evocado, vale dizer que, no caso do samba, – produto cultural que neste presente artigo representa o elân que demonstra como, diretamente, a cultura africana transmuda a cultura brasileira em afro-brasileira, – é o próprio território onde tal operação cultural emerge enquanto resistência e expressão de beleza.
Tia Ciata e a Pequena África consolidaram o lugar do negro no Brasil como sujeito capaz de fazer cultura, capaz de contribuir culturalmente, contrariando todo o esquema proposto pelo discurso racista e eurocêntrico vigente, anteriormente, desde o século XVI até o século XIX e, lamentavelmente, também presente no século XX.
Aquele reduto, lugar de ex escravizados, a dita Pequena África, impôs à historiografia brasileira um dado realmente impossível de ser desfeito. Um modo de confirmar tal intuição é lendo o que diz Dantas e Nascimento (2019) no artigo intitulado por Tia Ciata, representatividade e resistência: a ascensão do candomblé na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX:
Na “Pequena África” era comum esse resgate e resistência, ou seja, o sentimento de pertencimento do espaço era principalmente o que matinha essa identidade viva através dos cotidianos, do modo como se comunicavam entre outros. É nesta perspectiva que se fazia notória a cultura trazida pelos baianos para a cidade e a aglutinação das demais culturas dos ex-escravos que já viviam na cidade do Rio de Janeiro (DANTAS e NASCIMENTO, 2019, p. 30).
Por fim, parafraseando Neto (2017), vale dizer que entre a agonia e a festa (NETO, 2017, p. 11), entre a luta e a perseguição, Tia Ciata inscreveu na história brasileira o seu nome enquanto lugar e território de resistência, transformando este mesmo espaço, enquanto cultura e brasilidade na mais autêntica cultura afro-brasileira.
Considerações finais
O presente artigo que aqui se encerra, logrou demonstrar o lugar no negro na cultura brasileira antes e depois da criação do samba. Para tanto, percorreu, dentro do debate cultural dos estudos culturais – pela via de Stuart Hall – e dentro de dois temas rigorosamente delimitados e realmente pertinentes ao assunto aqui discutido, quais sejam, “África” e “resistência”, logrou demonstrar que, de fato, a liberdade é um fator realmente fundamental para que toda e qualquer cultura desabroche.
Desta forma, o samba, criação eminentemente brasileira transmudou e deu sentido a uma identidade nacional ao assumir características da cultura africana, transmudando esta mesma cultura, outrora carente de um sentido estético mais profundo, em cultura afro-brasileira.
O povo negro e ex escravizado, no Brasil, entre a agonia e a festa, demonstrou por meio da criação do samba que, de fato, o negro é capaz de aprender, assimilar e criar linguagens.4
A criação do samba, no entanto, tem um papel crucial para demostrar que de fato, onde não há liberdade, não pode haver florescimento cultural.
Assim, a resistência negra nos terreiros de candomblé apresentou não somente a dicotomia samba de terreiro e samba-mercadoria de que muito bem discorreu Magno Bissoli Siqueira na sua importante obra Samba e identidade nacional5, mas, sobretudo, iluminou toda uma tradição outrora, de fato, carente de sentido estético e identitário.
O samba, finalmente, é um produto cultural do negro porque o negro é capaz de cultura. Desta forma, fica patente a demonstração de que onde existe liberdade, haverá cultura, beleza e, por isso mesmo, fonte de formação e representação mais verdadeira da identidade afro-brasileira.
Referências
ALVES, L. Henrique. Sua Excelencia – O Samba. São Paulo: Editora Simbolo, 1976.
DANTAS, Jéssica Ramos da Silva Dantas; NASCIMENTO, Leonardo Ramos. Tia Ciata, representatividade e resistência: a ascensão do candomblé na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisa SANKOFA: Rio de Janeiro, 2019.
LOPES, Nei; SIMAS, Luis Antonio. Dicionário da História social do Samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
NETO, Lira. Uma história do samba: as origens. São Paulo: Companhia da Letras, 2017.
MENDONÇA, Renato. A Influência Africana no Português do Brasil. Brasília: FUNAG, 2012.
OGOT, Bethwell Allan. História geral da África, V: África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010.
SIQUEIRA, magno Bissoli. Samba e identidade nacional: das origens à Era Vargas. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
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1O autor Henrique Alves, citando Lúcio Rangel (Sambistas & Chorões) explica que o tal famoso samba Pelo telefone nasceu na residência de Tia Ciata, na praça Onze, em 1917. (1976, p. 23)
2Todo esse parágrafo é uma alusão indireta ao capítulo VI da obra Samba e Identidade Nacional, onde, por exemplo, é possível ler a tal referência aqui parcialmente reproduzida que o autor Magno Bissoli Siqueira faz à obra de Celia Maria Marinho de Azevedo em relação a uma revolta de negros ocorrida no Haiti.
3Os nomes Tia Assiata, Assiata de Oxum, Iyá Kekerê ou ainda Hilária Batista de Almeida referem-se à mesma pessoa. (NETO, 2017, 40).
4Conferir Magno Bissoli Siqueira e a sua obra Samba e identidade nacional, p. 100.
5Ibidem, p. 198
Este artigo foi escrito por Gilson Santos e publicado originalmente em Prensa.li.