O Símbolo Perdido
Toda sociedade apresenta sua personalidade por meio de aceitação de situações cotidianas. Para uns, algumas são inconcebíveis. Os símbolos são instrumentos moldáveis que indicam o nível de aceitação.
Não à toa, Viviany Beleboni sofreu os maiores revezes de sua vida. A atriz transexual pisou nos religiosos, maltratou Deus, vilipendiou crenças milenares. Em verdade, ela não fez nada disso; apenas ousou usar um dos símbolos mais expressivos da religiosidade ocidental, em especial a brasileira, ao desfilar pregada numa cruz na 19ª Parada do Orgulho LGBT.
Não fez nada disso, mas foi como se tivesse feito. Os efeitos surtidos foram como se tivesse feito. Os xingamentos de que foi alvo se deram como se tivesse feito. Se tivesse desfilado sobre uma arca (também um símbolo religioso) ou sobre patíbulo e com forca no pescoço (símbolo de sofrimento pleno), não teria sofrido tudo o que teve de suportar.
Símbolos são importantes. Haja vista tantas guerras em nome de bandeiras, flâmulas e brasões. Lewis Hamilton levou muitos fãs de Ayrton Senna às lágrimas quando pediu a bandeira do Brasil no Grande Prêmio S. Paulo de Fórmula 1.
Em 2002, Diego, jogador do Santos, comemorou aos gritos e com pulos um gol sobre o time do São Paulo. Gritar é simbólico, pular idem. O imbróglio se deu porque o gesto foi sobre o escudo do rival desenhado no chão à margem do campo, agravado por ser no estádio do adversário. Assim, gerou grandes desavenças no momento entre torcedores.
O símbolo perdido em meio a ignorância
O caso do jogador Diego é emblemático para este ensaio. Por anos seguintes, a cena fatídica levou perigo de vida a si e a familiares. Diego foi perseguido tanto por torcedores do rival quanto por de outros clubes, além de ser criticado intensamente pela mídia,
Contudo, toda essa situação retraiu o jogador a ponto de não comentar o verdadeiro motivo da cena. Somente muito tempo depois se soube que sempre foi são-paulino. Um dos seus sonhos era vibrar com um gol junto ao escudo do time de coração. Junto, não sobre; junto, não em cima.
Assim, segundo visão de quem esteve perto da situação, tudo o que houve foi ignorância dos princípios dos fatos. A euforia momentânea de Diego desenhou com cores de tripúdio a cena que deveria ser pintada pelas cores da homenagem.
O símbolo perdido na cidade
Há semelhanças entre as cenas que envolveram o escudo do time paulista e o touro e bronze instalado no centro da cidade paulista. Nos dois casos, os protagonistas tinham intenções diversas das que foram apresentadas, não obstante opostas ao que tudo indica.
Diego - via técnica esportiva - pretendia homenagear; o escultor - via patrocinadores - pretendeu holofotes (o verbo está no passado perfeito porque o “touro da discórdia” já foi retirado do local).
Em ambos os casos, contudo, os objetivos não foram alcançados, razão pela qual o título deste ensaio trata o touro de bronze como “símbolo perdido”. Como destacado no início, “símbolos retratam aceitação do significado de uma peça, da lembrança que tal peça invoca no cidadão ou no grupo de cidadãos”.
Então, o momento da homenagem do jogador e o momento da busca de holofotes por parte do escultor não foram adequados.
O símbolo do poder
A imagem de um touro é poderosa. O tamanho do tórax, a cabeça enorme e os chifres mortais impressionam a todos. Transmitem imponência, imperialidade, irredutibilidade. O escultor e seus patrocinadores tentaram associar tal poder à força do mercado financeiro nas sociedades atuais, à importância dessas atividades para o desenvolvimento de uma nação.
Além disso, o animal é “parceiro” até quando é agressivo. Ao atacar, abaixa a cabeça para apanhar o adversário por baixo e içá-lo, empurrá-lo para cima. Simbolicamente, o touro sempre se engrandece porque engrandece a quem ataca. Por isso, os bons momentos do mercado são chamados “bull market” (“mercado touro”).
(Curiosidade: o símbolo conceitual dos maus momentos do mercado é “bear market” [“mercado urso”]). Esse animal, ao atacar suas presas, dá patadas de cima para baixo, empurrando-as assim para ainda mais baixo.)
Do simbolismo à discórdia
O problema é que não era o momento de a “silhueta do poder” se apresentar. Os gráficos da Bolsa estavam recebendo golpes de urso desde dias antes e até dias posteriores. Os papéis da Bolsa, representados pelo Ibovespa (índices), estavam no menor patamar possível.
Diz-se que, em sociedades capitalistas, as bolsas de valor respectivas traduzem a situação da população. O momento do país é degradante para a maioria. Desemprego, fome, insegurança política, crises institucionais, inflação galopante, entre outros itens, criam ambiente adverso ao que o touro representa.
Assim, estando a bolsa em baixa, o bem-estar físico e emocional da população acompanha esse estado. Essa contradição gerou uma infinidade de protestos, dos mais diversos tipos e objetivos. Veja alguns:
Protestantes colaram cartazes no touro já no dia seguinte à aparição do animal. Frases que lembram a real situação do país alertavam para a contradição da presença do símbolo
A ONG SP Invisível promoveu churrasco popular para moradores de rua dois dias depois do surgimento do touro. O local foi exatamente em frente à cara do animal. Transeuntes também se refestelaram no evento, que objetivou protestos contra o progresso hipotético. Vinicius Lima é cofundador da ONG e justificou a iniciativa: "Falam que o touro significa progresso e que a economia melhora, mas essa não é a verdade. Tem mais gente passando fome”
E, no dia seguinte, novos protestos. Manifestantes usaram tinta preta para escrever frases contra a falta de impostos e taxas para ricos
Da significância de força a memes humilhantes
Há réplicas em frente às bolsas de várias cidades: Euronext, em Amsterdã; Frankfurt, Alemanha; Mumbai, Índia; Shenzhen, China etc. Quanto à de S. Paulo, muita gente se dispôs a fazer selfie com o touro. Pessoas que passavam aleatoriamente pelo local e outras que, vindas de longe, planejaram a foto aproveitaram a novidade.
Contudo, por todas as controvérsias, o “Touro da Bolsa” foi alvo de humilhação por parte de manifestantes bem humorados.
Um tal Júlio César sugeriu substituição do touro pelo cachorro caramelo
Nonô, o Vovô Investidor, escreveu que “colocar a estátua de um touro na frente da B3 é a mesma coisa que colocar teto solar num carro velho. Não faz o menor sentido”
Um IronMukeka disse que o Boi Bumbá foi promovido
Um Carlos Sala 404 alegou que prefere a Vaquinha do Açaí ao touro da bolsa, referindo-se a símbolo promocional em Belém do Pará
Muitos consideram a imagem “cafona”, “brega”, “inapropriada”
Outros apontam falhas no visual, como joelhos inexistentes e tamanho dos testículos, além da cor dourada
Parte da população brasileira é milionária; outra parte, miserável; entre ambas, há a parte que protesta, que se indigna, que se manifesta segundo seus próprios meios, que não desiste de seus ideais. Nesta, há os que protestam com bom humor.
Em qualquer situação, sob qualquer ângulo, segundo todas as análises, a parte milionária do Brasil perdeu a batalha conceitual da simbologia. Mostrou fraqueza aquilo que era para representar força; o que deveria simbolizar esperança e determinação escancarou inapetência e inabilidade.
Algumas informações a mais
O touro primigênio que deu origem à manada que se alastrou pelo mundo tem mais de 30 anos. Foi inaugurado em frente à entrada da Bolsa de Valores de Nova York em dezembro de 1989. Criado pelo artista italiano Arturo Di Modica, representa exatamente a força do mercado financeiro americano.
São pouco mais de 3,5 toneladas de bronze, fundido no atelier do escultor em Lower Manhattan. Diz-se que os custos de produção foram todos assumidos pelo próprio idealizador, o artista. Batizou-o “Charging Bull” (“touro em ataque”). Atualmente, está no Bowling Green Park, próximo ao local original, de onde foi retirado por provocar problemas no trânsito.
Sua intenção foi prestar confiança na recuperação do mercado financeiro após a crise de 1987. Naquele ano, em outubro, o mercado de ações americano desceu mais de 22% no poço da bancarrota pelo índice Dow Jones e derrapou na recuperação por dois anos seguintes.
Então, o touro parece ter “revertido” o cenário. Por coincidência ou por motivos aparentemente metafísicos, a instituição financeira nova-iorquina evoluiu a olhos vistos depois que ele surgiu. Do mês em que mostrou seu porte até a atualidade, o índice só conheceu subidas.
Quiçá o touro paulistano, ainda que com peso menor (3 ton) e cor estranha, além de outros defeitos, invoque o mesmo panorama de felícia e prosperidade ao mercado financeiro do país! Por extensão, à população em geral.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.