O tempo marcado pelo mercado
Pode-se medir a passagem do tempo dentro do mercado. Não o mercado fantasia econômica, mas o mercadinho de todo mês, ou o supermercado. Quem faz compras mensais, há pelo menos 50 anos, viu diante dos olhos uma transformação avassaladora pelos corredores desses estabelecimentos.
Desde os secos e molhados, quitandas e mercearias - empreendimentos familiares que dispunham seus itens ao ar livre, cada um pesava sua quantidade - ao avanço das primeiras grandes redes “super-tudo”, que finaram os mercados de esquina.
Da chegada dos itens plastificados, embalados a vácuo, em milhares de cores e opções, ao ápice, até o presente momento, de um sujeito comprar um carrinho inteiro sem precisar abrir a boca.
Algo novo no Brasil, os caixas eletrônicos - não os do banco, os do mercado mesmo - ainda estão em “fase de teste”, como se houvesse possibilidade de falha. Qualquer argumento contrário encontra justificativa só pela isenção das férias remuneradas e décimo terceiro.
Conglomerados que controlam os mercados (agora sim, a fantasia econômica) das grandes cidades dividem metade dos seus espaços às máquinas. A outra metade, aos caixas humanos. Por enquanto.
É engraçado reparar a interação dos agitados consumidores com os quietos novos integrantes do disputado mercado de trabalho: não se dão boa noite - o que poderia sugerir falta de educação é visto como privilégio; não tem cara feia - a não ser a do próprio comprador no reflexo da tela, meio escondido entre pixels coloridos.
Surgem, como legítimo paradigma moderno, filas silenciosas de pessoas e carrinhos olhando quadrados brilhantes, de olhos cerrados e dedos em riste: tentando não se desentender com quem não é possível se explicar.
Seria lindo obter alimentos que mantêm vivo um ser humano, utilizando uma máquina criada também por um ser humano, sem precisar de outro ser humano plantado 8 horas por dia, ou mais, por uma miséria, longe de sua residência, para um trabalho tão simples.
Seria lindo se este terceiro ser humano também pudesse se valer da função desse mesmo espaço. Acontece que cada máquina que vejo é um subempregado a mais engrossando as penosas filas do desalento.
O fenômeno não se restringe aos supermercados. O consórcio que administra o metrô do Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo lucrando no balanço anual dos acionistas, aumenta o valor da passagem e demite funcionários - em detrimento dos tímidos sistemas operacionais interativos.
Esse movimento veio para ficar, queiramos ou não. O que fazer com ele é a pergunta que torna tudo mais complicado. Vivemos uma reestruturação produtiva que promete tornar inempregáveis pessoas sem formação especializada.
A escala de produção atual, seja de alimentos ou tecnologias, se bem organizada, consegue atender todos os seres humanos segundo suas necessidades. Abrindo espaço para cada um buscar, segundo suas capacidades, a interminável corrida pela felicidade.
Resta saber quanto tempo levamos para dar importância ao que, de fato, importa. Fica o ressentimento da possibilidade sempre impossibilitada. Fôssemos realmente dotados do dom da organização, não falar a mesma língua do caixa eletrônico seria o maior dos problemas.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.