O túmulo do jornalismo
Informações confiáveis estão escasseando. O túmulo do jornalismo já está aberto. (Imagem: Renato Danyi - Pexels)
As metáforas que se vê a seguir podem representar ou não a realidade. Contudo, é quase certo que a assertiva “Google pode se tornar o túmulo do jornalismo” tem se mostrado mais real do que simples figura de linguagem.
O mundo do samba já disse mais de uma vez que “São Paulo é o túmulo do samba”.
Em discurso de despedida durante a 4ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal, em 2002, Lindberg Cury (antigo Partido da Frente Liberal/DF), referiu-se a Brasília [das décadas 70/80] como “túmulo da democracia”.
Giacomo Casanova, um escritor italiano do século 18, afirmou que “o casamento é o túmulo do amor”.
Quanto ao Google, é preciso compreender minimamente suas estratégias para associá-lo ao túmulo do jornalismo. Este artigo busca simplificar essa compreensão.
“Mordaça” via diploma de habilitação
Para muitos jornalistas clássicos, já renomados no mundo da formação de opinião pública, a construção do túmulo do jornalismo começou em 2009. Até então, o Decreto Lei n. 972/69 fazia exigir diploma superior para exercício da profissão de jornalista.
Naquele ano, o STF decidiu que o escopo do Decreto Lei não é justo. Em resumo, o órgão máximo da Justiça brasileira identificou que o diploma era, em si, produto da ditadura militar, cuja intenção foi facilitar identificação de cidadãos contrários ao regime.
Texto publicado na época pelo site JusBrasil confirma que o ministro Celso de Mello preferiu não discursar em seu voto, sobre a origem ditatorial da obrigatoriedade. Ainda assim, o magistrado classificou como “espúrio” o decreto-lei de exigência de diploma ou do registro profissional para exercer a profissão de jornalista.
Mello viu ainda o sentido de “liberdade de ofício” para embasar sua decisão de votar contra a exigência. Complementou o raciocínio analisando as últimas constituições brasileiras. Segundo ele, estas sempre destacam a “questão do livre exercício da atividade profissional e acesso ao trabalho”.
Assim, Mello acompanhou o voto do então presidente do STF e relator do caso, Gilmar Mendes.
Mendes, jornalismo e cozinha
Para sustentar seu voto contra a obrigatoriedade, Mendes se apropriou também de metáforas de comparação. Associou “jornalistas” a "cozinheiros". Alegou que os perigos nascidos na má conduta de um bom cozinheiro não oferecem riscos à vida de nenhum cidadão; isso também ocorreria com o jornalismo.
“Se cozinheiro não precisa ter diploma, jornalista também não. Jornalista não mata ninguém, como o médico ou como o engenheiro”, disse Mendes e completa: “Um excelente chefe de cozinha poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima estarmos a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área”.
Com essa mensagem, o até hoje ministro pretendeu associar o livre exercício profissional não categorizado em cursos superiores. Ou seja, emitir opinião, seja ela qual for, não é prerrogativa exclusiva de formados em cursos superiores. Todo e qualquer cidadão tem esse direito.
O Globo, jornal pertencente à maior holding de comunicação da América Latina, corroborou a decisão do STF em editorial, segundo o site Portal da Imprensa. O jornal se manifestou em 2015, quando a Câmara dos Deputados voltou a discutir o tema. Segundo o editorial, um dos mais fortes temores era as empresas substituírem profissionais antigos por novatos não diplomados, o que não ocorreu naqueles seis anos.
O túmulo do jornalismo formatado
O Google existe há quase 25 anos. A palavra é corruptela de outra, googol, que é nome dado ao número 10100 (1 seguindo 100 zeros). Foi criada por uma criança de 10 anos, mas essa é outra história. Contudo, certamente a criança não teve noção da intensa verdade contida naquele trocadilho.
O alcance da empresa-potência mundial não equivale, claro, aos dez duotrigintilhões nem em valor nem dimensão física. Entretanto, seu peso no processo de construção da opinião tem forçado o nível ético do jornalismo para baixo. A coisa toda começou como simples estratégia empresarial de aumento de receita, mas avançou muito.
A partir de então, muito mudou na sanha financeira dos gestores. Relatos, apesar de meio obscuros, dão ritmo a críticas de muitos editores sérios a respeito dessa sanha. Por outro lado, de consumidores a produtores de notícias, todos reconhecem que a internet facilitou sobremaneira o fluxo de informação.
Entretanto, o caminho tomado por grandes plataformas, como Google e Facebook, não tem se mostrado justo. E não exatamente por intenção ou iniciativa próprias, mas por facilitar postura inábil e antiética de divulgadores rasteiros de notícias.
Barulho silencioso dos indignados
Os benefícios que o Google tem tornado acessíveis em vários campos são inegáveis. A própria Prensa já divulgou e divulga muitos deles. A beneficiação em saúde, tecnologia, educação, empreendedorismo é enorme, sem ainda mencionar as facilidades em pesquisas do cidadão.
Mas nem tudo é altruísmo. O jornalismo sério, competente, responsável, consciente de seu importante papel na evolução das relações sociais é o campo que mais sofre com tal postura.
A esmagadora maioria dos veículos sérios, com altos custos para produzir notícias, está contrafeita em relação à postura dos mecanismos de busca. Com o Google, em especial, que é precursor nesse cenário. Entretanto, há um entrave para manifestação dessa contrariedade.
Consumidores de notícias migraram para a mídia digital. O Google, seus pares e seus concorrentes dominam a mídia digital. Empresas jornalísticas capacitadas dependem de mídia digital. Portanto, denunciar, provocar, acarear mídia digital é o mesmo que cutucar a onça com vara curta.
O silêncio faz barulho, mas poucos ouvem.
No Brasil, Carta Capital é um dos barulhentos. Em longa matéria, em que o próprio título já indica seu furor, o jornalista Guilherme Ravache detalha os esquemas incentivados indiretamente pelo Google e, portanto, ignorados.
Jornalismo reproduzido
Ravache denuncia o papel das estratégias do Google e o aponta como coautor do que pode ser chamado de jornalismo reproduzido. Ou seja, jornalismo rasteiro, facilitado a partir de simples copie-e-cole. Assim, “catadores de notícias” permanecem à espreita, monitorando veículos em busca de “furos”.
O jornalista de Carta Capital não usou o termo “coautor” para se referir ao Google e, por escala, a outras plataformas de busca. Contudo, no frigir dos ovos, é como a multinacional americana se comporta: facilitadora de jornalismo reproduzido e não de jornalismo produzido.
De certa maneira, todo produtor de conteúdo informativo se orgulha de ter suas matérias mencionadas, como este site faz, inclusive neste artigo. Jornalistas são iminentemente produtores de conteúdo. Ter seu trabalho mencionado, observado e devidamente creditado - como aqui, por exemplo - equivale a elogios e prêmios.
Contudo, os sistemas de pesquisa dos mecanismos de busca fazem alastrar os chamados tais catadores de notícias, como se vê abaixo.
Google decide
Ravache ainda destaca que a capacidade de decisão especialmente do Google é nociva. O sistema monitora todo o comportamento dos internautas para, enfim, decidir o que entregar na tela:
Quantidade de cliques mostra a frequência de conexão
Tipos de tema indica os interesses individuais
Tempo de acesso a determinado estilo de site demonstra disponibilidade
Estilo de imagens clicadas demonstra tendências de consumo
Características visuais dos sites acessados alimentam os robozinhos googleanos
Incidência de compartilhamento provoca aumento de oferta de temas
As ferramentas Google utilizadas indicam o caráter profissional ou amador
Assim, esses tópicos e outras centenas deles criam possibilidades analíticas e estatísticas. Os números observados pela inteligência artificial fazem os robozinhos alastrar ou ocultar determinados temas. Contudo, o caráter frio, externo ao cidadão, de tomada de cidadão não tem ética.
Ou seja, os robozinhos não se importam se a peça jornalística foi produzida por Sicrano ou Beltrano da Empresa X ou Empresa Y. O importante para eles é identificar o que certo tipo de consumidor quer receber ou não em sua tela. Não se importam nem mesmo se a notícia é falsa ou não.
O importante é acumular cliques.
Indignação mundo afora
Há pouco mais de um ano, o The Guardian, jornal britânico com mais de 200 anos de existência, ousou tocar no assunto. Publicou matéria sobre o próprio Google ter admitido usar "certos experimentos” que podem excluir sites das pesquisas.
A iniciativa da gigante americana teve efeito mais forte na Austrália, o que torna o fato ainda mais gritante. Afinal, a empresa estava em negociação com o governo do país a respeito de cobrança por divulgação de notícias locais.
Em janeiro deste ano, o New York Post, jornal diário estadunidense ainda mais antigo que o britânico, foi mais incisivo que o brasileiro Carta Capital. Em matéria, específica, também usou o verbo “destruir”, mas o associou a “conspiração” e colocou o Facebook ao lado do Google: “Uma conspiração Google-Facebook para destruir a indústria do jornalismo”.
O texto denuncia arranjo secreto entre os CEOs das duas megacorporações a fim de amealhar lucros maiores. Para tanto, não haveria limite. Um dos trechos mais destacáveis alega que “as gigantes da tecnologia agem abertamente como senhores de nosso discurso, às custas da imprensa livre [de] cujas receitas publicitárias eles se apropriaram. Conluio ilegal para estender seu poder é apenas o próximo passo lógico”.
Quando a fonte secar
Ravache refere ainda a artimanha usada por site rasteiros, aqueles que ficam vasculhando o trabalho de veículos competentes em busca de facilidades. Tão logo identificam um bom tema, simplesmente criam um título-link chamativo, normalmente bizarro, e copiam a matéria.
É o chamado jornalismo de cliques. Afinal, quanto mais cliques o título conseguir, mais lucro o site tem com receita ofertada pelo Google ou Facebook. Novamente, para essas empresas, a ética profissional é o que menos importa.
O jornalista da Carta Capital reproduz preocupação de vários editores de sites profissionais. Estes mantêm equipe grande em regime oficial legislativo trabalhista, com encargos, impostos e taxas. Investem em equipamentos, instrumentos, transporte e hospedagem de correspondentes; seus colaboradores usam tempo e gastam com tecnologia e pesquisas.
Já os sites rasteiros mantêm equipe mínima de estagiários, para a qual paga valor praticamente inaceitável. A equipe vasculha a internet, copia textos de sites profissionais precedidos daqueles títulos-link. Recebem milhares de cliques em poucos minutos.
E o Google paga tais sites regiamente. E anunciantes pagam tais sites regiamente, pois precisam que seus produtos sejam vistos pelo maior número possível de consumidores.
Mas e quando a fonte secar? É a pergunta que Ravache deixa no artigo. Quando as empresas sérias fecharem as portas por falta de receita, tais sites rasteiros vão copiar o que de quem?
Se não houver respostas de gestores, o tempo as dará. E podem não ser respostas interessantes para ninguém.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.