O último samba de Elza e Mané
Dois deuses do panteão da cultura popular: Elza e Mané (Acervo UH/Folhapress)
Com a bola nos pés, ele fazia a alegria do povo brasileiro. Com um microfone nas mãos, ela entoava canções que mexiam com a plateia, ora usando a suavidade da sua voz, ora vocalizando um tom arranhado, ao estilo do Jazz.
Nem eram um par musical, muito menos uma dupla de ataque de um time. Elza e Mané, amantes, namorados, marido e mulher, foram um casal improvável numa sociedade hostil à sua relação. Nos anos em que juntos caminharam pela estrada da vida, viveram altos e baixos, passando por uma Ditadura que os perseguiu (e quase os matou) até momentos de perdas irreparáveis para ambos.
O samba choroso que conta a vida destes dois personagens históricos, gigantescos para o nosso país, embala os episódios da série "Elza e Mané - amor em linhas tortas", disponível no Globoplay.
Do encanto ao desencanto, os episódios desvelam a relação entre a cantora e o jogador, entrecruzando temas e momentos relevantes para a história do Brasil.
Capa da série documental “Elza e Mané” (Imagem/reprodução: Globoplay)
Primeiro acorde
O encontro desses dois ícones se deu na preparação para a copa do mundo de 1962. Elza, convidada a cantar na concentração da seleção brasileira, foi auxiliada por Garrincha, que cedeu seu quarto para que ela pudesse fazer seu camarim.
Quem esteve presente relata que já havia algo no ar entre os dois. É nesse encontro mítico, inclusive, que Mané promete a Elza a vitória na copa.
O triunfo no mundial veio, assim como a aproximação entre a cantora e o craque sensação no Brasil e no mundo, considerado por todos o maior nome do futebol brasileiro naquela competição entre seleções, lembrando aí que Pelé, contundido, não jogou, cedendo espaço para o brilho da estrela do anjo de pernas tortas.
Contudo, havia uma questão fundamental neste ponto. Casado, Garrincha tinha 6 filhas e vivia com sua esposa no povoado de Pau Grande, em Magé, no interior do Rio de Janeiro. O que existisse entre ele e Elza seria, aos olhos da sociedade, um escândalo.
Aos poucos, as ausências do jogador dos treinos do seu clube, o Botafogo, começaram a causar curiosidade. Onde andaria o Mané?
A resposta nem era tão difícil, como mostraria uma rápida procura empreendida por jornalistas amigos do craque. Ele estava na casa de Elza, na Urca.
O craque compartilha a taça do mundo com Elza (Imagem/reprodução: Globoplay)
Nesses dias, sumido, sequer em sua casa ele esteve.
Os jornalistas, então, documentaram o regresso de Mané a Pau Grande. Fotografaram desde a silhueta de Elza, sem identificá-la propriamente, até Garrincha com suas filhas, no retorno à sua casa.
Não demorou muito e as manchetes dos principais jornais cariocas já davam o destaque ao caso do jogador com a cantora.
Sob hostilidade social, vítima de escárnio público inclusive, Elza teve de segurar a barra para sustentar uma relação que se mostraria, ao longo dos anos, muito difícil.
Sobe o tom no refrão
Do céu ao inferno, os episódios da série documental abordam o declínio vertiginoso de Garrincha, da glória de 1962 ao completo esquecimento, recluso em sua casa.
Um dos principais fatores, sem dúvida, era o alcoolismo. Apreciador de cachaça com groselha, Mané era frequentemente visto em quase todas as bodegas da região bebendo sem cerimônia. Em paralelo a isso, sua forma física ia se deteriorando, em especial seu joelho, que recebeu injeções para aliviar as dores constantes.
Em paralelo, Elza Soares começava a gozar de reconhecimento musical. E, de fato, era ela quem sustentava a casa, a despeito de acusações de que ela teria acabado com a carreira de Garrincha.
A interrupção do brilho da estrela de Elza, ao menos no Brasil, veio com o regime de exceção implementado por meio do golpe militar em 1964. Ambos hostilizados, inclusive tendo sua casa metralhada, o casal busca exílio na Itália em 1970. É lá que se aproximam de Chico Buarque e Marieta Severo, de quem se tornam grandes amigos.
Elza ganhou os palcos da Europa. Garrincha, por outro lado, afundou mais e mais sua carreira.
Retrato da cantora Elza Soares durante o Festival da Música Popular Brasileira na capital paulista, em dezembro de 1968 (Foto: José Pinto/Estadão Conteúdo)
É fato que, desde sua saída do Botafogo, Mané jamais exibiria sequer um terço do futebol que encantou os estádios do mundo inteiro.
Dentre todos os jornalistas e pesquisadores entrevistados no documentário (Juca Kfouri, José Trajano, Zeca Camargo, além de ex-companheiros do futebol, como Gérson), é unânime a fala de que Mané não se ajudava.
E, acompanhando os relatos de quem conviveu com o craque, parece que tudo girava e retornava ao ponto inicial: Garrincha, bêbado, fingindo jogar bola enquanto caía pelo gramado.
Um fim de carreira melancólico.
Elza, aos trancos e barrancos, aguentou até onde pôde. Um dia ela se foi, e Mané rapidamente preencheu seu lugar sem, talvez, ter jamais eliminado o vazio deixado.
Estrofe final
Garrincha em Ibati, no fim dos anos 1970 (Foto: Memória Paranaense)
Passando por um período de derrocada e redenção, Elza Soares reinventou-se enquanto cantora e produtora cultural. Do samba ao eletrônico das periferias, ela emergiu nos anos 2000 como a mulher do milênio, eleita pela BBC, fazendo parte de um seleto grupo de artistas mulheres ao redor do mundo.
É inclusive nesse momento que sua carreira toma novos rumos com trabalhos autorais marcados pelo posicionamento antirracista e pela sua afirmação enquanto rainha da música popular brasileira.
Infelizmente, sua passagem pela Terra terminou em janeiro deste ano. Contudo, sem dúvida alguma, sua trajetória de superação inspirou diversas pessoas.
As linhas tortas, que uniram e separaram Elza e Mané, traçaram a história de um encontro de dois deuses do panteão brasileiro da cultura popular. E, sem dúvida alguma, a série da Globoplay conseguiu captar com toda a sensibilidade necessária essa história de amor.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.