O Universo de Love, Death & Robots: as novidades da segunda temporada
Robôs vagando por uma cidade pós-apocalíptica, demônios com sede de sangue, laticínios sencientes no poder, lobisomens no exército. Tudo isso e mais um pouco. Essa foi a proposta da temporada de estreia de Love, Death & Robots.
A série antológica foi um sucesso inesperado e mais do que bem-vindo. Para órfãos de Black Mirror, ela foi uma cura para a ressaca. E para os viciados em animação, ela certamente desafiou a busca por novos estilos.
Produzida por Joshua Donen, David Fincher, Jennifer Miller e Tim Miller, a série apresenta as mais diversas temáticas, repletas de um tom futurista e de ficção científica. Fincher apresenta em seu currículo de diretor clássicos como conhecido Clube da Luta ("Fight Club", 1999) e A Rede Social ("The Social Network", 2010). Já Miller se tornou bastante conhecido por dirigir Deadpool em 2016.
Em 15 de março de 2019, a Netflix lançou a primeira temporada, que conta com 18 episódios. Aqueles que não são muito fãs de longas histórias vão se deleitar com os curtas de menos de 20 minutos. Cada um deles foi animado por diferentes equipes de vários países.
O nome da série é bem sugestivo, já que não faltam elementos aludindo à sexualidade, violência e robôs. E mesmo que formada majoritariamente por animações o seriado conta a participação live-action de Mary Elizabeth Winstead (Aves de Rapina) e Topher Grace (That ‘70s Show).
Além deles, Michael B. Jordan (Pantera Negra), Joe Dempsie (Game of Thrones), e muitos outros artistas participam como dubladores ou inspirações para o visual dos personagens.
As histórias por trás da primeira temporada
Programas antológicos como Black Mirror e Electric Dreams de Philip K. Dick (da Amazon) ganharam popularidade, deixando histórias mais curtas atraentes para um público acostumado com longa-metragens e séries de múltiplas temporadas, resultando em novas adaptações.
No caso de Love, Death & Robots, algumas das narrativas foram publicadas pela primeira vez online e até podem ser lidas sem qualquer tipo de assinatura ou inscrição. Outras estão disponíveis apenas em coleções publicadas.
Algumas das obras que serviram de inspiração para Love, Death & Robots
Em A Vantagem de Sonnie ("Sonnie's Edge") conhecemos uma sobrevivente de agressão sexual que participa de uma batalha secreta usando monstros projetados. O curta é baseado no conto de mesmo nome de Peter F. Hamilton, lançado em 1991 na revista New Moon. Ele faz parte de um mundo maior que Hamilton chama de “Universo da Confederação”. A maioria das histórias desse universo aparecem em seu livro “A Second Chance at Eden”.
Já o autor britânico Alastair Reynolds é a mente por trás de Para Além da Fenda de Áquila (“Beyond the Aquila Rift”) e Zima Blue, dois destaques da primeira temporada. No primeiro, vemos uma tripulação de uma nave espacial sofrer as consequências de um erro de percurso, enquanto retornava para casa.
Em contrapartida, Zima Blue possui uma pegada bem mais filosófica e carrega uma mensagem muito bonita para concluir a temporada inicial. O curta fala sobre um artista renomado que está prestes a revelar sua obra final para o mundo, enquanto ultrapassa seus limites para descobrir seu verdadeiro eu.
Cena de Zima Blue - Imagem de Reprodução
Para Além da Fenda de Áquila foi originalmente publicado em uma antologia “Constellations: The Best of New British SF”, e Zima Blue em 2005 na revista Postscripts.
O autor da série Guerra do Velho, John Scalzi, encabeçou três contos em Love, Death & Robots: Quando o Iogurte Assumiu o Controle ("When the Yogurt Took Over"), Histórias Alternativas ("Alternate Histories") e Três Robôs ("Three Robots").
Nestas narrativas, a criatividade de Scalzi nos leva a uma Terra governada pelo iogurte, nos mostra versões alternativas da morte de Adolf Hitler e três robôs em um tour por uma cidade apocalíptica.
Um detalhe é que a maioria dos contos selecionados foi escritos por homens, mas há exceções como Ajudinha (“Helping Hand”) de Claudine Griggs, publicado pela primeira vez na edição especial “Queers Destroy Science Fiction” da Lightspeed Magazine em 2015. Ele segue a história de uma astronauta cujo EVA dá terrivelmente errado.
Referências a cultura pop
E não são apenas autores de ficção científica que influenciam a coletânea. As duas temporadas apresentam referências a clássicos da cultura pop. Confira algumas delas (mas cuidado com os spoilers)
Pela Casa - Alien 3 (1992)
Montagem com imagens de reprodução
No episódio natalino, temos dois irmãos que aguardam ansiosamente para conhecer o Papai Noel. Acontece que o bom velhinho não era o que elas esperavam (mas também não era nenhum Krampus). Uma criatura horrenda e vermelha os encurrala de uma forma muito semelhante ao xenomorfo de Alien 3. Coincidência ou não, o terceiro filme da franquia é dirigido por David Fincher, um dos produtores de Love, Death & Robots.
Ajudinha - Alien, O Oitavo Passageiro (1999)
Imagem de reprodução
A popular criatura de Alien também é referenciada no episódio de uma astronauta sozinha e à deriva no espaço, após problemas técnicos. A personagem afirma que está em uma estação no satélite LV-426. Essa é uma referência ao planeta Acheron, onde o Capitão Dallas, Kane e Lambert exploram e acabam levando o xenomorfo para dentro da nave, gerando os piores acontecimentos do filme.
Ponto Cego - O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991)
Montagem com imagens de reprodução
Este episódio da primeira temporada apresenta uma equipe de robôs tentando arrombar um caminhão. Tudo por um microchip muito valioso. Para isso eles devem passar por várias defesas. Quando tudo sai fora de controle, resta apenas um membro da equipe ainda intacto: o novato. Quando seu resgate chega, ele vê o braço de seu companheiro no chão fazendo um “sinal de positivo”. A cena remete a morte do T-800 (Arnold Schwarzenegger), quando o exterminador afunda no fogo e se despede de John e Sarah Connor.
Os Três Robôs - Exploding Kittens
Montagem com imagem de reprodução de Love, Death & Robots e jogo "Exploding Kittens"
Em um mundo onde a humanidade já se extinguiu, três robôs fazem um tour por uma cidade apocalítica. Passeando por vários locais, eles entram em um apartamento abandonado. No momento que um deles, o X-Bot 4000 acaricia o gato em seu colo, os seus colegas assumem que a animal irá explodir. Isso porque banco de dados acusa a existência de um jogo chamado “Exploding Kittens”, um nome bem sugestivo.
Quase dois anos depois temos uma segunda temporada
O que mais chama atenção inicial quando analisamos as temporadas de Love, Death & Robots foi a escolha dos produtores quanto aos episódios. Se na primeira temporada temos 18, na segunda são apenas 8. Seria o caso de qualidade sobre quantidade? Não necessariamente.
Montagem com imagens de reprodução de episódios da segunda tempoada (Gelo, Grama Alta, Esquadrão de Extermínio e O gigante Afogado)
A temporada 1 conta com uma cartela de episódios mais diversificada e muitos chamam atenção pelo seu plot twist e mensagem, como em Para Além da Fenda de Áquila, Boa Caçada (“Good Hunting”), A Testemunha (“The Witness”) e Zima Blue. Há um sentimento de tensão muito forte na maioria dos episódios, além de experimentações com linguagem narrativa, visto que ainda não sabemos o que ocorreu em A Testemunha, nem o que mantem os personagens presos naquela situação.
Puxam o nosso tapete quando entendemos o que de fato aconteceu com Thom e onde ele foi parar. Torcemos pela fuga bem sucedida de uma prostituta. Ficamos angustiados por ver um mundo perdendo a magia diante de tanta tecnologia e o preço que alguns acabam pagando por isso. Nos deslumbramos com a simbologia e significado de Zima.
O mesmo encantamento e impacto não ocorre quando passamos pouco mais de uma hora e meia vendo aos 8 episódios da nova temporada. Claro, temos alguns episódios bem agradáveis e pertinentes ao público sedento da temporada anterior, como Gelo ("Ice") e Esquadrão de Extermínio (“Pop Squad”).
Os pontos altos são suas narrativas ricas que poderiam muito bem ser aproveitadas em outros trabalhos, outras adaptações mais longas, dando continuidade.
Baseado em uma história de Paolo Bacigalupi, Esquadrão de Extermínio é de longe a visão distópica mais desafiadora e emocional de toda a segunda temporada. Nela nos deparamos com um mundo em que pessoas preferem a imortalidade a ter filhos. Um mundo claramente separado entre imortais e progenitores. Um mundo onde crianças devem ser escondidas. O personagem principal é um policial que tem como função rastrear e matar crianças ilegais.
Em Esquadrão de Extermínio a personagem se submete a um procedimento regularmente para viver para sempre - Imagem de reprodução
Porém o restante dos episódios nos oferece o mesmo sentimento de Metamorfos ("Shape-Shifters") e A Guerra Secreta ("The Secret War".) Ação, mas sem muitas surpresas.
O que não significa que a temporada nova não tenha seus méritos, além de Esquadrão de Extermínio. Da primeira para a segunda é mais nítido a atenção especial que tiveram com a CGI usada e a atenção em não sexualizar suas personagens femininas, um dos pontos negativos da temporada inicial.
Ainda que excelente em muitos aspectos como a diversidade de histórias, é possível notar alguns exemplos de mulheres sendo vitimizadas, objetificadas ou sexualizadas.
Montagem com imagens de reprodução de episódios da primeira temporada (Para Além da Fenda Áquila, Boa Caçada, A Testeminha e A vantagem de Sonnie)
A Testemunha, por exemplo, nos mostra uma profissional do sexo que presencia um assassinato e passa a maior parte do episódio com quase nenhuma roupa. Sem mencionar que sua dança sexy se torna longa demais, não acrescentando em nada ao enredo. Em contrapartida, o episódio tem uma das melhores reviravoltas da temporada.
O mesmo vale para Além da Fenda de Áquila que cria uma sequência gráfica de sexo, com direito a até champanhe envolvido. Mas a adição com certeza nos deixa mais surpresos e até um pouco assombrados quando percebemos com quem Thom estava realmente tendo relações.
Porém, diferente da primeira temporada, podemos ver temáticas que se repetem ao longo dos episódios como imortalidade e fragilidade da vida, o que necessariamente não é algo ruim. Se por um lado a temporada 1 optou pela variedade, a segunda forneceu uma linha central, ligando pelo menos metade de seus episódios.
Esquadrão de Extermínio, como já foi mencionado trata da escolha da imortalidade diante da finitude da vida, mas o preço a se pagar por essa escolha é caro demais para muitos personagens.
Snow no Deserto também nos apresenta um personagem que consegue se regenerar de quaisquer ferimentos - tal qual um Wolverine futurista. Por esse motivo ele é perseguido pela maior parte do curta, pois muitos querem as mesmas habilidades que ele. Nesse mesmo episódio, a personagem feminina revela em seu próprio corpo, ou o que restou dele, o quão frágil é a raça humana.
A imortalidade e fragilidade humana também aparecem no episódio Gelo. Nos deparamos com um planeta gelado habitado por humanos modificados, algo comum para os personagens. Os aprimoramentos tornam qualquer um mais forte e resistente, o que gera conflitos e preconceito entre os humanos modificados e não modificados, como os irmãos Sedge e Fletcher. Apenas um é visto como frágil. Apenas um é visto como incapaz de encarar situações de perigo.
O que esperar da próxima temporada?
Imagem de reprodução
Felizmente não teremos que aguardar 26 meses para mergulhar em novos episódios da antologia. Antes mesmo da estreia da segunda temporada, a Netflix já havia confirmado a terceira leva de contos para 2022.
O que vai acontecer?
Apesar de Love, Death & Robots ser uma antologia, o showrunner Tim Miller e a diretora Jennifer Yuh Nelson anunciaram, em uma sessão de perguntas e respostas no Reddit, que o curta Três Robôs terá uma continuação na terceira temporada.
Outros detalhes ainda permanecem em segredo. Por ora, podemos torcer por mais histórias alucinantes, que nos façam imaginar o futuro e questionar a sociedade. E por que não ter também as reviravoltas absurdas da primeira temporada? Quanto a segunda, ela teve seus méritos, mas vale dar uma boa olhada em como tudo começou.
Este artigo foi escrito por Luana Brigo e publicado originalmente em Prensa.li.
Parabéns pelo texto! Adoro esse seriado e achei sua síntese muito boa. Sabe de qual texto do Paolo Bacigalupi que o episódio "Esquadrão de extermínio" foi baseado?