O vírus do individualismo
Fragmento de "Eco e Narciso", pintura de John Willian Waterhouse (1903). Apresenta Narciso no momento de deslumbramento com o próprio reflexo.
A edição de março da revista Scientific American traz um artigo muito interessante e de nome, no mínimo, intrigante: “A microbe proved that individualism is a myth”, ou “Um micróbio provou que o individualismo é um mito”, da antropóloga americana Robin G. Nelson.
Seu cerne é discutir a ideologia nacionalista estadunidense de autossuficiência, o que ela chamará um Ethos Cultural (ethos – conjunto de hábitos e costumes fundamentais característicos de uma coletividade, época ou região).
A narrativa do sucesso pelo trabalho duro, individual, atravessa a sociedade americana – não só ela. O que se esconde por trás disso é o aumento, pré-pandemia inclusive, de pessoas em situação de vulnerabilidade.
A classe média e os degraus abaixo vem sendo esmagados por moradias caras, escolas com poucos recursos, estagnação salarial e desigualdade sistêmica. As dificuldades de sobrevivência impõem um modelo de redes de autoajuda, seja atrás de conforto emocional ou ajuda material*.
A pandemia quebrou essa possibilidade em rede, aumentando ainda mais os riscos da população vulnerável. Essas pessoas são contornadas por ciclos de violência, fome e miséria, impedindo acesso ao básico. Para Robin, apenas políticas nacionais de cuidado comunitário conseguem atender a demanda crescente.
São realmente curiosos os paradoxos dessa situação toda. Um problema aparentemente individual só encontra resolução num contexto social, no momento de uma pandemia cuja doença exige isolamento.
Conflitos evolutivos
A antropologia reconhece que o salto de nossa evolução enquanto humanos foi, justamente, a vida em comunidade. O sucesso como espécie é signatário de nossa interdependência.
É difícil não pensar hoje em como falhamos miseravelmente no combate à pandemia. Toda a tecnologia não foi direcionada a mitigar a complexidade que o momento pede. A pobreza aumenta em escala - e em número infinitamente menor - os milionários também.
A autora debate ainda a desumanização dos corpos, e certos grupos, causada pelo predomínio do “eu” sobre o “nós”. Desumanização essa que é secular - lá e cá.
Quem pôde, se protegeu; quem não pode foi obrigado a escolher qual fim lhe é mais aprazível, como se fosse possível.
A elaboração de políticas emergenciais, de caráter nacional, visando combate direto à exposição dos mais vulneráveis ao vírus deveria ser senso comum em todas as classes.
O país que produziu mais de uma vacina contra o micróbio é o por ele mais afetado.
Por aqui seguimos lógica parecida. A reação cega ao contágio em massa instaurou uma “seleção natural” macabra. Conscientemente, ou não, permite-se que os “não adaptáveis” morram, de forma a garantir a vitória dos que se considerem mais fortes.
O saldo traumático vem impondo visões diferentes. Nunca foi tão óbvio que somente uma estratégia unida, que leve em conta todo o conjunto da humanidade, pode nos livrar de vez desse inimigo comum. Nas palavras de Robin, em tradução livre: “cuidar dos outros é cuidar de nós mesmos”.
As recentes movimentações de países produtores de vacinas contra Covid, em direção à quebra de patentes, sinaliza que, muito mais lento do que deveria, o mundo vai se dando conta disso.
Nunca fomos, nem seremos, independentes do resto de nós. Imprimir urgentemente, atrás da orelha, essa noção é o que pode nos salvar. O resto é conversa.
*Vale muito a recomendação do curta “Onde eu moro”, que disputa o Oscar desse ano. Dirigido por um brasileiro, acompanha a vida de desabrigados em cidades dos Estados Unidos. Está no Netflix.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.