Obras do Cinema que são Alegorias sobre a Ascensão do Fascismo - Parte 1
O cinema já nos brindou com muitas reflexões sobre o nosso mundo. Mesmo o cinema fantástico não deixou de representar, através da fantasia, conflitos e situações que espelham a nossa realidade. O fascismo, uma das faces mais cruéis da extrema-direita, apavorou o mundo na primeira metade do século passado. E tem se mostrado cada vez mais presente.
Porém, graças a cultura e a arte, hoje podemos identificar com mais clareza seu ressurgimento. Confira algumas obras cinematográficas que funcionam como um conjunto de metáforas da escalada do fascismo ao poder:
Trilogia Matrix
O primeiro Matrix, dirigido pelas irmãs Lili e Lana Wachowski, alcançou enorme êxito de crítica e público em 1999, revolucionando o cinema sci fi. Suas continuações não tiveram a mesma boa aceitação. Uma das críticas que as pessoas costumam fazer é que o protagonismo parece passar de Neo (Keanu Reeves) para o Agente Smith (Hugo Weaving).
Se no início Neo era o escolhido, nas sequências Smith, um mero programa de segurança sob ordens da Matrix centralizou muito as ações. Tanto que Neo foi obrigado a forjar uma aliança com a Matrix para derrotá-lo. Aliança essa que também foi alvo de críticas de parte do público. Afinal, a Matrix era o grande vilão. O que não ocorreu a muitos foi que estes fatos ecoavam a realidade.
A Matrix representa a ordem, o nosso mundo de aparências, onde estamos presos ao sistema. Neo representava a revolução. O Agente Smith é a face mais cruel e violenta do sistema, usado para manter a ordem. No mundo real, toda vez que o sistema é ameaçado por um processo revolucionário ele opta por investir de poder uma camada mais radical de enfrentamento que desemboca no facismo. Fascismo esse que, eventualmente, tentará destruir também o próprio sistema.
Foi isso que aconteceu no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, onde as elites europeia e norte-americana apoiaram a ascensão ao poder de Benito Mussolini, Antonio Salazar, Adolf Hitler e Francisco Franco. Extremistas alçados a condição de líderes para conter a ameaça vinda da União Soviética após a Revolução de 1917, que depôs o Czar e toda a nobreza russa. Em Matrix, após o sistema perder a batalha do primeiro filme, este empodera o Agente Smith para enfrentar Neo. E acaba o transformando numa ameaça a todos os atores sociais envolvidos.
O mesmo ocorreu com o fascismo na segunda guerra, pois é comum as pessoas se esquecerem que ele também é antissistêmico. Desse modo, saiu do controle, quis dominar o mundo e só foi detido graças a uma aliança que envolveu soviéticos, norte-americanos, britânicos, franceses etc.
Por isso, em Matrix 2 e 3, os antigos inimigos fazem uma trégua em vez de lutarem até a morte, como se esperava. Assim, Neo forja uma aliança com a Matrix para derrotar o “mal maior” criado anteriormente pela própria Matrix para deter Neo.
Trilogia Pequel de Star Wars
A trilogia clássica de Star Wars falava sobre como Luke Skywalker (Mark Hammil) e seus amigos derrubaram o Império Galáctico, ao mesmo tempo em que o herói descobria que seu próprio pai havia sucumbido ao lado sombrio e tentava resgatá-lo. E George Lucas nunca escondeu as implicações políticas de sua obra. Dessa maneira, quando anunciou uma segunda trilogia contando como a República virou Império, o cineasta fez mais do que contar a transformação de Anakin Skywalker (Jake Loyd/Hayden Christensen) no vilão Darth Vader.
Essa volta ao passado lhe deu a oportunidade de mostrar não apenas a queda de um indivíduo, mas de toda uma sociedade civilizada. Não é por acaso que o primeiro filme, A Ameaça Fantasma, envolve uma complexa trama política que começa com o embargo econômico ao Planeta Naboo pela Federação de Comércio - qualquer semelhança com o embargo à Cuba pelos Estados Unidos pode não ser mera coincidência.
Aos poucos, a trama acompanha a ascensão política do senador Palpatine (Ian MacDiarmid) de Naboo, que era secretamente um Lord Sith. Ele estava por trás dos atos de Nute Gunray, vice-rei da Federação de Comércio. Palpatine termina A Ameaça Fantasma, eleito Chanceler Supremo da Galáxia.
No segundo longa metragem, O Ataque dos Clones, o Chanceler manipula os eventos que levaram as Guerras Clônicas - que podem, ou não ser uma referência a Guerra Civil Espanhola. Ele termina este filme ganhando poderes extraordinários do senado para lidar com a crise.
No terceiro filme da trilogia prequel, o plano de Palpatine é descoberto pelos Cavaleiros Jedi, mas é tarde demais. Após corromper Anakin, ambos transformam a República em Império. Nute Gunray é morto por Anakin e a Federação de Comércio é estatizada. Usando a desculpa de uma suposta ameaça dos Jedi, Palpatine torna-se imperador e oprime toda a galáxia.
Toda essa trajetória foi nitidamente inspirada na de Adolf Hitler, um tirano que foi, pouco a pouco, ganhando poderes na Alemanha até passar de chanceler a fuhrer. Existe um meme famoso na internet bastante utilizado toda vez que ocorre alguma ruptura democrática no mundo real. É a cena da reação de Padmé Amidala (Natalie Portman) diante da coroação de Palpatine como imperador e o fim da república:
“Então é assim que a liberdade morre. Com um estrondoso aplauso."
A Vingança do Mosqueteiro
Existem muitas versões de Os Três Mosqueteiros e o filme de Peter Hyams de 2001 com certeza é uma das menos celebradas. Público e crítica torceram o nariz para a tentativa de mesclar a obra de Alexandre Dumas com acrobacias de filmes de kung fu.
Porém, a adaptação da trama política - também pouco fiel a do livro - teve um resultado bastante interessante. Aqui o maior vilão não é o Cardeal Richelieu (Stephen Rea) e sim Febre (Tim Roth), o homem de preto. Febre é um vilão exclusivo do filme, não existe na versão literária.
Alguns o confundem com Rochefort, o braço direito de Richelieu que no livro tem uma rivalidade com D’Artagnan (Justin Chambers). Mas Rochefort também está em A Vingança do Mosqueteiro, vivido por David Schofield. Embora a subtrama da rivalidade com o herói tenha sido absorvida pelo personagem de Tim Roth. Rochefort, inclusive, é uma das vítimas fatais de Febre em sua ascensão ao poder.
Não contente em ser apenas um capanga do vilão principal, Febre arma um plano para iniciar uma guerra entre a França, a Inglaterra e a Espanha, forçando Richelieu a pedir ajuda a D’Artagnan e aos Três Mosqueteiros para impedi-lo.
Devido a sua implacável inescrupulosidade, Febre é chamado algumas vezes como o monstro de Richelieu. Um monstro cujo criador perdeu o controle dele. Ao ser chamado de monstro três vezes seguidas por pessoas diferentes de lados políticos diferentes, Febre sorri maquiavelicamente e diz:
“Três vezes. Devo ser mesmo.”
Este artigo foi escrito por Guilherme Cunha e publicado originalmente em Prensa.li.