Obras do Cinema que são Alegorias sobre a Ascensão do Fascismo – Parte 2
Nesse texto daremos continuidade a análise dos filmes que funcionam como representações do risco do fascismo para a sociedade Leia a primeira parte aqui.
Onde os Fracos Não Tem Vez
Durante uma caçada, Llewelyn Moss (Josh Brolin) se depara com vários cadáveres e uma mala cheia de dinheiro. Resultado de uma venda de drogas que deu errado. Moss decide fugir com o dinheiro. Em seu encalço, os chefes do tráfico enviam Anton Chigurh (Javier Bardem), um sádico matador de aluguel. Atrás de ambos vai o xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones). Após um certo ponto, Chigurh vai longe demais na caçada a Moss e ao dinheiro e decide não obedecer mais seus chefes. Os quais enviam então Carson Wells (Woody Harrelson) para tentar resolver a situação.
O principal foco do filme dos irmãos Coen não é o caráter ambíguo de Moss nem a expectativa sobre quem vai ficar com o dinheiro. Ou qualquer outro clichê de histórias de crime que tem esse mesmo ponto de partida. Onde os Fracos Não Tem Vez é a observação do xerife sobre a mudança para pior da criminalidade em geral, especialmente no que diz respeito ao personagem Anton Chigurgh.
Passada na década de 1980, a obra costuma fazer mais sentido quando se sabe que seu título original seria algo como “Onde os Velhos Não Tem Vez”. Embora o título brasileiro também faça sentido. A exemplo de outros filmes na lista, aqui acompanhamos o mesmo padrão.
Alguém desafia o sistema corrupto estabelecido e triunfa num primeiro momento. O sistema busca uma opção para sobreviver. Recorre, então, a sua criação mais terrível e a empodera. Acreditando que ela permanecerá sob suas ordens.
Porém, a certa altura, essa vertente mais cruel do sistema ganha independência e tenta destruir não só os inimigos do sistema, mas o próprio sistema. Exatamente como ocorreu com o fascismo ao longo da história.
Numa pesquisa feita na Bégica, Chigurh foi considerado a mais fidedigna representação de um psicopata no cinema. Uma curiosidade é que ele usa uma moeda do mesmo jeito que o vilão Duas Caras do Batman.
Trilogia Batman - O Cavaleiro das Trevas
Essa é uma escolha polêmica. Principalmente pelo terceiro longa metragem ser frequentemente acusado de ser de direita e pelos constantes e contraditórios memes que circulam na internet sobre o Batman.
O primeiro filme da trilogia Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, Batman Begins, nos mostra uma metrópole corrompida pela criminalidade. Nele os pais de Bruce Wayne (Christian Bale) são assassinados por um homem, Joe Chill (Richard Brake), que tentou roubá-los porque estava com fome. Bruce tentou matar Chill na saída do tribunal, mas ele foi executado a mando do chefe do crime organizado Carmine Falcone (Tom Wilkinson), para não delatá-lo.
Rachel Dawes (Katie Holmes), assistente da promotoria, explica a Bruce que Falcone criava vários Chills todos os dias e que era o principal responsável pela depressão econômica de Gotham City. Para confrontá-lo, Bruce viaja pelo mundo e acaba encontrando a Liga das Sombras de Ra’s Al Ghul (Liam Neesom). O qual acredita que a sociedade é tolerante demais com criminosos. Ele lhe ensina o que é preciso para combater o crime, mas quer que Bruce vá além disso. O que ele recusa.
Mais tarde, após voltar a Gotham, Bruce se torna Batman e prende Falcone. Mas descobre que Ra’s tinha outros planos. Ele não queria acabar só com o crime na cidade, ele queria acabar com a cidade e todas as pessoas junto. O discurso de Ra’s na Mansão Wayne é completamente fascista:
“A Liga das Sombras combateu a corrupção humana por milhares de anos. Devastamos Roma. Enchemos navios mercantes de ratos. Ateamos fogo em Londres. Toda vez que uma civilização atinge o auge da decadência voltamos para restabelecer o equilíbrio. Quando encontrei você na prisão, estava perdido. Mas eu acreditei em você. Tirei o seu medo e lhe mostrei um caminho. Você foi meu melhor aluno. Deveria estar do meu lado agora, salvando o mundo.”
Sim. Ele acredita que combaterá a corrupção e salvará o mundo cometendo um genocídio. Após derrotá-lo, Batman volta a se dedicar a eliminar o crime organizado. Sem Falcone, os chefes do crime ficam a mercê das ações do herói e seus aliados, o Tenente Gordon (Gary Oldman) e o promotor Harvey Dent (Aaron Eckhart).
É quando decidem contratar um tipo diferente de criminoso para enfrentar o Batman. O Coringa (Heath Ledger) é um psicopata inteligentíssimo, que usa o dinheiro e recursos da máfia de Gotham para suas próprias finalidades.
O vilão acredita que, ao vestir sua máscara, o Batman deu início a uma escalada darwinista de ruptura social e está disposto a ir até as últimas consequências para provar sua teoria. Muitos dizem erroneamente que o personagem é um anarquista, apenas por ele ter dito numa cena que introduzir um pouco de anarquia levaria ao caos. O Coringa nada tem a ver com os pensamentos de Proudhon, Bakunin ou outros autores anarquistas. Mas sim com uma interpretação muito peculiar do conceito do super-homem de Nietzche.
É na aplicação de seus métodos que ele se revela um fascista. Por exemplo, quando ameaça explodir um hospital caso os cidadãos de Gotham não matem um delator que queria revelar a identidade secreta do Batman. Ou quando seu plano de fazer os grupos de passageiros de duas barcas explodirem um ao outro falha.
Após perder o “jogo”, ele simplesmente pega o controle remoto disposto a explodir as duas barcas por si mesmo. Ou seja, ao contrário do que o vilão afirma, aquelas pessoas nunca tiveram liberdade de escolha. Estavam destinadas a serem mortas por ele mesmo que ambos os lados tenham decidido não se tornarem assassinos.
Assim como Ra’s, o Coringa não acredita mais nas instituições, repletas de hipocrisias sociais e falsos moralismos. Com esse discurso, ele convence Harvey a se tornar o Duas Caras e este simplesmente mata a sangue frio mafiosos e policiais corruptos.
O outrora promotor que acreditava no estado de direito teve não apenas seu rosto deformado num atentado onde sua amada Rachel morreu. Ele também teve sua alma deformada. E passa a aplicar métodos fascistas de justiçamento. Com muito sacrifício, Batman consegue deter os dois.
Anos depois, o herói tem que enfrentar o ressurgimento da Liga das Sombras. E um elaborado plano da filha de Ra’s, Talia (Marion Cottilard) que envolve transformar Bane (Tom Hardy) num falso revolucionário para dominar a cidade. Depois de expor a fraude que envolveu a morte de Harvey Dent, Bane faz um discurso contra a corrupção (sempre ela). Depois cria tribunais de exceção nomeando o Espantalho (Cillian Murphy) como juiz. Muitos viram no filme uma crítica a revoluções em geral. Mas é importante salientar dois pontos.
Primeiro que é explícito a Batman e ao público que o plano da Liga das Sombras é dar esperança aos cidadãos de Gotham para depois matá-los com uma bomba nuclear. Não existe nenhum interesse real numa revolução e sim em cumprir a missão de Ra’s Al Ghul em Batman Begins. E a Liga das Sombras jamais teve um discurso de revolução e sim de destruição.
Segundo que Bane inicia o longa metragem como capanga do bilionário Daggett (Ben Mendelsohn), o qual ele assassina assim que revela seus planos autônomos mais grandiosos. Exatamente o caminho traçado pelo Coringa com os mafiosos e outros personagens que ilustram a ascensão do fascismo nessa lista. Uma curiosidade é que o discurso de Bane teria sido copiado pelo ex-presidente Donald Trump, baluarte da extrema direita norte-americana.
Apesar de ser apontado algumas vezes como um personagem fascista, podemos verificar que, em toda a trilogia, Batman se opõe a inimigos que praticam o fascismo. E é simbólica a resposta que Bruce dá a Ra’s no primeiro filme, quando este afirma que o herói devia estar ao seu lado, “salvando o mundo”:
“Meu lugar é bem aqui. Entre você e o povo de Gotham”
Saga Harry Potter
Vamos ignorar as recentes polêmicas envolvendo a autora J K Rowling e seu comportamento transfóbico e nos concentrar no universo criado por ela. Toda a saga de Harry Potter (Daniel Radcliffe) nos livros e filmes é também a história da ascensão de seu arqui-inimigo, Lord Voldemort (Ralph Fiennes), o mago das trevas. Outrora conhecido como o bruxo Tom Riddle.
Tom era um mestiço que, ironicamente, odiava os trouxas (como são chamados os humanos no universo Harry Potter). E queria lutar pela superioridade dos “puro-sangue” contra os “sangue-ruim”. Ou seja, ele só aceitava bruxos de “raça pura”, não misturados com trouxas, mesmo que ele próprio fosse um. Qualquer semelhança com os planos de limpeza étnica de Adolf Hitler para a hegemonia da raça ariana na Alemanha Nazista não é mera coincidência
Após ser derrotado no passado, seu nome passou a assombrar a vida de Harry e seus amigos. Durante os primeiros livros, Voldemort sempre é citado como “Aquele que não deve ser nomeado”. Esse é um dos pontos mais criticados sobre como as pessoas lidam com o fascismo. Fingir que não aconteceu, evitar falar sobre o assunto e tratar como se jamais pudesse voltar a acontecer algo tão terrível.
Tudo isso permite que o fascismo se fortaleça nas sombras, enquanto a maior parte da sociedade faz vista grossa. A chamada onda conservadora que tomou conta do mundo nos últimos anos já se desenhava há muito tempo mas, tal qual os personagens em Harry Potter, boa parte das pessoas preferiam fazer de conta que as manifestações fascistas eram casos isolados.
Além de tratar como exagerados e até irresponsáveis os que apontavam os riscos. Tal qual Harry e seus amigos eram tratados pelo Ministério da Magia todas as vezes que alertavam sobre o retorno de Voldemort.
Após Voldemort voltar e assumir o controle sobre o Ministério, ele criou e distribuiu panfletos que alertavam para os riscos que os sangue-ruins representavam para a sociedade mágica. Esses folhetos eram muitos semelhantes ao material distribuído pelo Ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels.
Os Dementadores, os temidos guardas da prisão de Azkaban, também aderiram facilmente a causa de Voldemort. Isso pareceu mais uma associação ao modo como o fascismo muitas vezes está incrustado nas forças de segurança pública. A pregação de um discurso de superioridade para seduzir as massas como justificativa para aniquilação daqueles que são diferentes é outra semelhança entre Hitler e Voldemort.
Seja o Agente Smith, Palpatine, Darth Vader, Febre, Coringa, Duas Caras, Voldemort ou Anton Chigurh, todos representam a mesma escalada do fascismo. E são um alerta do que ocorre quando poder demais é dado a pessoas que não tem o menor compromisso com a humanidade.
Este artigo foi escrito por Guilherme Cunha e publicado originalmente em Prensa.li.