Obrigado, Miura
Sempre fui alguém facilmente atraído por visual. Coisas bonitas. Neon. Objetos que se destacam do todo. Não por acaso cursei Design Digital ao invés de Análise de Sistemas. Eu queria um curso, profissão e ambiente que permitissem me expressar visualmente como bem entendesse. Leia-se fazer o que quiser com meu cabelo, minhas roupas, meus piercings e tatuagens.
Quando era menor, fui afetado por isso sem saber, numa escala que eu jamais imaginaria. Como bom nerd padrão, fã da cultura pop japonesa, um dia me deparei numa das livrarias do Bairro da Liberdade, em São Paulo, com um cara cego de um olho portando uma espada colossal.
Não era grande. Não era imensa. Era um colosso. Dava pra sentir o peso daquilo só de olhar. A empunhadura era pequena e fina, o que só ressalta o esforço para levantar aquilo.
Personagem Guts, do mangá Berserk, obra de Kentaro Miura - Reprodução: Editora Hakusensha
Pensei "Uau. Taí um cara forte."
Esse era o Guts. Gatsu na pronúncia do original em japonês. Um cara que me conquistou à primeira vista, mas sempre se manteve distante.
Levou uns bons 5 anos ou mais até que eu tivesse a minha primeira experiência com a sua história. E com a mágica da caneta do Miura.
Eu já não era mais tão pequeno assim.
Sabia o que era Berserk.
Sabia que era muito bonito e agressivo.
Lembrava de uns monstros enormes, mas conhecia pouco da narrativa.
Até que um dia meus pais foram viajar e fiquei em casa sozinho.
E aqui, é importante ressaltar o SOZINHO, pois venho de família cristã conservadora, e pra quem bem conhece Berserk ou tem família assim , sabe que não seria fácil explicar porque na tv havia cenas de estupro, tortura, mutilações e cerimônias demoníacas.
Enfim, nesta oportunidade me joguei de cabeça nesse mundo sombrio.
Fui lá ver o que tinha de bom pra hoje. E nunca mais voltei.
Assisti os 25 episódios de uma vez. Um atrás do outro. Era tarde de um sábado e não consegui parar depois de começar. Nem pra comer. Engoli e fui engolido pela trama e trilha sonora. E diga-se de passagem, mas Susumu Hirasawa, o compositor da trilha do anime original, fez com Berserk o que Vangelis fez com Blade Runner.
Sem spoilers para os que ainda não viram (mas gente, sério! 2021. CORRE E ASSISTE!) : a história conta a vida de um menino, nascido em meio a guerra, de uma mãe morta. Que nunca conheceu o amor, que sempre, SEMPRE, se virou sozinho. Tudo muda ao encontrar um bando de mercenários que dão um novo sentido à sua existência. Daí meu amigo, é só ladeira abaixo, literalmente, e vai parar até no inferno.
Nascimento de Guts - Crédito: Cosmo Nerd
Na minha primeira maratona, eu já nem respirava na metade da série. Lembro do quão chocado fiquei pelas sensações que senti ao ver os conflitos dos personagens. Gente que construiu uma história e carreira juntos, traindo um ao outro. Amigos brigando, se separando e se tornando rivais por ganância. Sonhos e objetivos colocados acima de sentimentos, bem na vybe do que diz o poeta "quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus".
O melhor de tudo foi a sensação extremamente confusa causada pelo vazio que me invadiu já na manhã de domingo, ao ouvir Waiting so long do Silver Fins pela última vez.
Eu não conseguia explicar porque eu sentia que havia perdido alguma coisa. E o mais engraçado, no momento pareceu um sentimento ruim. Algo como quando terminamos um namoro ou perdemos um amigo. Mas a sensação que ficou foi de algo único. Especial.
Eu jamais voltei a ter a mesma experiência. Até hoje.
Depois desse dia, revi a série original várias vezes. E a sensação variava um pouco na intensidade, mas continuava me afetando de uma maneira parecida.
Vi os OVAs. E demorei muito tempo pra conseguir chegar até os mangás. No Brasil eram caros pra mim, e na época não era fácil achar online pra ler (Sorry Miura. Sou desses fãs que não paga o autor de vez em quando. Assunto pra outro papo.)
Crédito: AFP/Arquivos
Depois de ler os mangás todos, foi que tive uma ideia mais clara do porquê eu era invadido por um vazio sempre que via o anime.
O mangá se aprofunda na história, e vai muito além. Responde muitas coisas que ficam em aberto no desenho. Mas não era essa ainda a razão do vácuo em mim, mera curiosidade na história.
Depois de ir além e passar mais tempo seguindo os passos do Guts, percebi que tínhamos muitas semelhanças. Que eu adorava resolver as coisas sozinho. Que eu tinha dificuldades em depender dos outros, ou ter que esperar por alguém na vida, seja lá pelo que fosse.
Finalmente entendi. Quando eu olhava para o Guts, eu via um espelho. Eu me via ali. Mais bonito e idealizado, óbvio, né? Mas sentia que era eu. Ao terminar o anime de novo, era um pedaço de mim que ia embora. Quando o arco da história ficava em aberto, era uma parte minha que faltava explicar.
Apesar de resolver tudo sozinho, eu tinha amigos. Um seleto grupo de 5 pessoas que cresceram comigo. Mas que o tempo levou por inúmeras razões. Mesmo com uma vida razoavelmente tranquila para padrões brasileiros, eu tinha meus demônios noturnos me atormentando sempre que o sol se punha, me atrapalhando o sono. Careciam de exorcismo mas mesmo depois de algumas tentativas não se afastaram de mim.
E então, como tudo que eu percebi sobre eu e Berserk, levei mais um tempo pra entender que o Guts tinha a minha personalidade. Ou eu moldei a minha a partir do que vi ali. O ideal do herói, lobo-solitário e independente, que sempre acha a saída para o problema, não importando o tamanho dele, tenha um, dois ou mais pares de braços.
Foi aí que entendi ainda mais sobre a obra de Miura e um ponto importante: o estigma do sacrifício. A runa que marca Guts como o alvo a ser perseguido. Ela não é só um símbolo, uma marca para delatar o herói aos vilões.
Seu estigma é também um resumo de toda a essência de Guts, dessa vez em minúsculo, do inglês, os colhões. A coragem. O ato de fazer aquilo que tem que ser feito, quando tem que ser feito. A determinação visceral acima de tudo, que te faz arrancar o próprio braço para cumprir a sua missão e prender o lobo nas correntes. Porque é isso que você faz. Você entrega. Você resolve.
E Guts, o personagem, não ganhou por mero acaso. Mas sim, porque ele era a pessoa que podia carregá-la. Ainda que isso significasse ter hordas e hordas de inimigos vindos do inferno pra caçá-lo. Para ele, não seria um problema. Ele aguenta. Ele é o Guts.
Foi isso que Berserk me ensinou. Existem situações em que eu preciso fazer o que tem que ser feito. Porque se eu não fizer, ninguém mais vai. E por que eu? Porque sempre eu? Oras, porque eu aguento.
Obrigado Miura, por de longe sempre me lembrar da força dentro de nós que muitas vezes é esquecida, mas que quando usamos nos tornam berserks, e você sabe. Nada para um berserk e seu frenesi.
Rest in peace.
Este artigo foi escrito por Flavio Lee Budoia e publicado originalmente em Prensa.li.