Oferta e demanda por bens primários: justiça e liberdade produtiva
Feira do Produtor em Ceilândia - DF
Alguns itens estão associados aos direitos humanos e por isso precisam estar acessíveis às pessoas no geral. Tratando-se de direitos, a responsabilidade por prover tais bens é compartilhada entre os Estados, as famílias, empresas, etc.
Em uma situação ideal, onde todos os objetivos ONU fossem cumpridos, ninguém ficaria excluído do acesso a tais direitos. Mas sabemos que no mundo existem bilhões de pessoas que são excluídas deste acesso e algumas dezenas de milhões dessas pessoas são brasileiras.
O fato de já existirem condições técnicas para alterar essa situação e garantir a todos seres humanos acesso aos direitos básicos, revela que o problema é normativo. Ou seja, é necessário que algumas das ideias que orientam a produção global sejam reformadas ou abandonadas.
Entre as várias causas que podemos apontar para o fenômeno da exclusão, o mais comum é referenciá-lo a justiça distributiva (mais especificamente a falta dela). No entanto, queremos acessar um momento anterior a esse tipo de justiça.
Qual deve ser a origem dos bens primários?
Se existem bens primários que o Estado tem o dever de disponibilizar (seja direta ou indiretamente), o mesmo deve possuir a capacidade de determinar a produção de tais bens. Esta é a questão enfrentada pelo Professor Lucas Stanczky, de Harvard, no texto Productive Justice.
Stanczyk sugere que o Estado tem meios de determinar a produção dos bens primários de maneira justificável, por exemplo, através do trabalho compulsório, desde que a distribuição do seu fardo seja justa.
A base do argumento do autor é aquela segundo a qual, se o Estado pode violar as liberdades básicas do indivíduo em casos de uma ameaça externa sem com isso agir com injustiça, o mesmo também o poderá mediante uma ameaça como a miséria.
Mesmo que de forma imediata pareça uma medida extrema, o trabalho compulsório já existe na forma de restrições à emigração de recém formados em áreas estratégicas das universidades federais, por exemplo
No entanto, tal argumento não encerra o problema já que, a exclusão continua sendo uma realidade. O texto de Stanczyk nos avisa que antes de discutir a alocação justa dos bens produzidos, é importante definir o critério de justiça utilizado nessa produção.
Um dos avanços mais recentes da discussão em torno da justiça produtiva diz respeito à emergência das ReFi , DeFi e DAOs.
Na ausência de um critério de justiça que nos auxilie a avaliar arranjos produtivos, no momento de discutir a distribuição dos bens, acabamos reféns de premissas como a da escassez.
Tal premissa pode até ser útil na discussão sobre alocação de bens de luxo, por exemplo, mas quando o assunto é a alocação dos bens primários, tal premissa não pode receber uma espécie de licença contra o fato de que a humanidade como um todo já produz o suficiente para alimentar a todos.
O Brasil, por exemplo, sendo um dos maiores produtores de alimentos no mundo, é também domicílio de milhões de famílias cujas crianças desmaiam de fome nas escolas por falta de nutrientes.
Será que os pobres brasileiros não contribuem para o produto excedente que torna nosso país uma fazenda exportadora de alimentos para o mundo?
Em termos concretos, discutir a justiça na produção significa revisar, à luz do aspecto ético-normativo e não apenas técnico-econômico, como o fardo do trabalho compulsório e os incentivos à produção são distribuídos.
Se não discutirmos a justiça na produção, discutir no momento da distribuição na forma das medidas paliativas de transferências de renda pode ser tarde e caro demais, como tem sido até agora.
Se o brasileiro médio não está sendo beneficiado pelo arranjo produtivo atual, é necessário que seja concedido a ele a liberdade para escolher seu próprio modelo a partir de suas próprias premissas regionais, culturais, etc. Chamamos tal liberdade de liberdade produtiva.
O que o Estado não pode fazer, seja a partir de uma perspectiva libertária, liberal clássica ou mesmo marxista, é impor ao produtor um arranjo produtivo que limita seu potencial e o exclui do usufruto do valor do seu trabalho.
Liberdade Produtiva
Se a justiça produtiva diz respeito às condições nas quais se constitui o produto social, a liberdade produtiva diz respeito ao espaço de arbítrio disponível aos indivíduos e comunidades para definir a forma e as condições de sua contribuição ao produto social.
Como nos lembra Frank Cunningham no texto Market Economies and Market Societies, enquanto a economia de mercado é eficiente em alocar bens, uma sociedade de mercado pode ser predatória em relação a toda atividade que não seja industrial ou financeira.
O limite da liberdade produtiva no que diz respeito à decisão sobre o valor do seu produto é encontrado na demanda orgânica pelo produto. Desta forma, a liberdade produtiva nunca é absoluta, uma vez que seus limites são constituídos nas interações econômicas.
A violação arbitrária de tal liberdade pode surgir de três fontes: do abuso estatal e do abuso de entes privados. Como distinguir a atuação típica do Estado e a disputa natural dos entes privados no mercado dos abusos de ambas partes é um dos temas da discussão sobre liberdade produtiva.
Se a justiça produtiva diz respeito à origem dos bens primários e a liberdade produtiva ao arbítrio que cada sujeito e comunidade possui sobre sua produção, o encontro entre ambas ocorre na situação hipotética ideal.
Nela as condições de oferta de um bem primário são constituídas descartando tanto a exclusão do acesso a alguma parcela da população quanto a imposição violenta de arranjos produtivos predatórios.
Em termos concretos, a sugestão normativa que oferecemos é aquela segundo a qual o Estado e o Mercado brasileiros têm a responsabilidade de garantir que o experimentalismo em relação aos modelos de produção e reserva de valor não seja um luxo das elites financeiras.
Simplificando: devemos primeiro consolidar uma forma de justiça produtiva que priorize o arbítrio de quem produz, e, depois, uma forma de liberdade que permita aos produtores experimentar arranjos produtivos alternativos àquelas que atualmente lhes são predatórias.
Assim, acreditamos que o Estado brasileiro vai diminuir o custo de ter que aliviar a miséria proveniente de arranjos produtivos impositivos que não garantem a liberdade produtiva para a maior parte dos produtores e tampouco são eficientes em tornar bens primários disponíveis para toda população.
Ao invés de remediar a mediocridade, poderemos, finalmente, liberar o potencial de inovação reprimido pelos arranjos produtivos que atualmente distanciam o produtor do valor daquilo que produz.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.