Offshores em conflito com seu bolso
No início deste mês (out/21), os brasileiros minimamente bem informados acordaram em uma manhã com uma notícia estranha. Ela se alastrou pela internet como rastilho de pólvora, como fake news em grupos insanos de WhatsApp sem ser fake news. Deixou boquiabertos os envolvidos em macroeconomia; já os não envolvidos ficaram curiosos.
Três veículos informativos tão precisos e importantes quanto a prensa.li desbravaram não exatamente um segredo de Estado. Entretanto, tão explosivo quanto isso: o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, o atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e mais 328 celebridades mundo afora possuem empresas offshores.
Evidentemente, protegiam tal fato de eventual divulgação tanto quanto militares protegem segredos de Estado. Apesar disso, foi escancarado na internet como aquele rastilho. Em segundos.
Offshores nas garras de Pandora
A revista Piauí e os sites Poder 360 e Metrópoles tiveram acesso a documentos que elencam contas milionárias nos chamados paraísos fiscais. São mais de três centenas de nomes importantes em várias áreas, da política às artes. Dentre eles, o das duas personalidades brasileiras citadas, centro deste artigo.
Tais contas são representadas por empresas offshores, pesquisadas por mais de 600 jornalistas de muitos países. Por sua vez, esses jornalistas compõem o grupo Consórcio Internacional dos Jornalistas Investigativos. Nos últimos anos, o grupo pesquisou as estratégias usadas pelas celebridades para dispor das contas sem ser devastadas pela mídia.
Curiosamente, o Consórcio resolveu chamar os milhares de páginas do levantamento de “Pandora Papers”.
Por que “offshores” e por que “paraíso fiscal”
Segundo a Instrução Normativa RFB Nº 1037 da Receita Federal, quase 70 localidades são consideradas paraísos fiscais. O documento é de 2010 e, ao longo dos anos, 9 países foram excluídos por motivos diversos. Ainda por essa Instrução, considera-se como tal as nações cujas regras fiscais são altamente atrativas porquanto sejam flexíveis ao máximo. Algumas, inclusive, dispensam qualquer tipo de imposto.
Além da minimização de taxas - e até anulação -, os paraísos fiscais costumam levar ao pé da letra o ditado “o segredo é a alma do negócio”. Quaisquer dados, por desprezíveis que sejam, têm força de segredo crucial, mortal. Nesse horizonte, esses países são portas do Céu para os mais diversos tipos de investidores, incluindo os ilícitos.
Dessa maneira, tornam-se verdadeiros ímãs para empresas e cidadãos de qualquer parte do mundo. Estes pretendem, assim, manter seus bens fora do alcance das regras de seus países nativos. Posto que tais valores são expressos geralmente em dólares, o jogo cambial favorece os proprietários das contas.
Quanto ao nome “offshore”, trata-se de metáfora mais que adequada. Por estratégia, a esmagadora maioria dos paraísos fiscais são ilhas dispostas ao longo dos oceanos. Como complemento, “shore” é literalmente “costa” (fronteiras dos países) em inglês; “off” é partícula qualitativa que empresta caráter de “externo” a qualquer substantivo. Nesse contexto, “off shore” ou “offshore” possuem carga semântica de “além da costa”, “depois da costa”.
Nesse cenário, contas em paraísos fiscais são administradas “além da costa” do país dos proprietários. Assim, os papéis sofrem os efeitos cambiais à parte das normas nativas, de forma que impostos e taxas não os alcancem.
Paraísos fiscais mais atraentes
Para se ter ideia do potencial dessas contas, observa-se expressivo levantamento da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. O órgão foi fundado em 1961 e é composto por 38 países, cujo objetivo busca manter e estimular desenvolvimento econômico e comercial. Suas equipes de analistas confirmam a soma de mais de 11,3 trilhões de dólares “ocultadas” em títulos offshore.
Para comparação, somam-se os PIBs da Alemanha (potência), do Japão (potência) e do Reino Unido (idem). O resultado da soma é ainda um pouco menor que o capital represado nos paraísos fiscais planeta adentro.
Segundo estudos empenhados por diversas instituições financeiras mundiais, os cinco paraísos fiscais mais fortes até 2019 eram:
Ilhas Virgens Britânicas
Taiwan
Jersey
Bermuda
Ilhas Cayman
No ranking dos 20 maiores, constam ainda EUA e Suíça.
“Certo. E meu bolso com isso?”
Para compreender isso, é necessário certo exercício analítico. O Banco Central levantou dados em 2020 que mostraram que cidadãos e empresas brasileiros mantinham 1,12 trilhão de reais em contas offshore. Considerando o percentual de impostos que o cidadão comum e empresas pagam anualmente, o valor originado desse mais de um trilhão seria investido em melhorias e bem-estar de todos.
Pelo menos em tese, deveria ser investido. Eis um dos efeitos sobre o bolso do cidadão comum surtidos pela manutenção de contas no exterior.
Antes, é preciso destacar que, no Brasil, propriedades sobre “offshore” não são proibidas; consequentemente, a posse não é contravenção e muito menos crime. Aliás, esse caráter é muito bem informado na própria publicação da revista Piauí.
Segundo as regras do Brasil, qualquer cidadão pode ser proprietário de uma offshore. Entretanto, precisa declarar o fato ao Banco Central e desembolsar taxas iniciais protocolares. Quanto a isso, tanto Guedes quanto Campos Neto seguiram as regras, como qualquer “cidadão comum”. O problema é que ambos não são cidadãos comuns. Têm interesses particulares nas operações offshore, conforme se vê mais abaixo.
Não é nem contravenção, mas é nitidamente imoral, inconstitucional e antirregimental, segundo analistas consultados por este articulista.
Por que é imoral
O cargo de ministro da Economia ou de presidente do Banco Central contém prerrogativas que surtem efeito diretamente nos produtos cambiais do país. Como ocupante desses cargos, Guedes e Campos Neto poderiam criar regramento que, de alguma forma, aumentaria seus ganhos externos em razão dos dólares represados.
Certamente, trata-se de possibilidade, não se afirmando, portanto, que os dois funcionários públicos tenham agido dessa maneira. Ocorre que, pela variação cambial natural - ou seja, sem intervenção direta de qualquer dos dois -, os 9,5 milhões de dólares aplicados por Guedes, por exemplo, resultaram em lucro consideravelmente alto.
Em 2019 e segundo a “Pandora Papers”, Guedes tinha aplicado 38,5 milhões de reais. Com a variação do câmbio, esse valor avançou para quase 50 milhões de reais um ano depois. Menos de 10 meses depois, seus dólares valorizados renderam quase 3 milhões de reais.
A imoralidade é notada porque, habitualmente, Guedes demonstra certo distanciamento humano das classes sociais menos favorecidas. Prova disso são algumas de suas declarações em público. Numa delas, alega que dólar baixo possibilita o "absurdo" de as empregadas domésticas viajarem para Disney; em outro, sustenta que “o brasileiro come demais”; em uma terceira, questiona qual é o problema de o dólar estar alto.
Pode-se considerar esse tipo de imoralidade como conceitual, baseada em juízo de valor. Contudo, como se vê logo abaixo, há imoralidade prática.
Imoralidade aparentemente intencional
Recentemente e sob a caneta de Guedes com aval de Campos Neto, o governo brasileiro barrou trecho da reforma do Imposto de Renda, desta feita com aval do Congresso. Pelo trecho, proprietários de contas no exterior, em especial offshores, deveriam recolher impostos sobre seus lucros e ganhos de capital.
Se preferissem seguir as regras de repatriação de dinheiro aplicado no exterior, deveriam também pagar impostos de mais de 20%. Ou seja, em qualquer dos casos, “perderiam” alguns milhões de reais.
Por que é inconstitucional
Por força da legislação em vigor, prevista na Lei 12.813, Guedes e Campos Netos não poderiam ter relações com suas offshores.
O Inciso II do Artigo 5º prediz que qualquer servidor público está proibido de manter negócios com empresas ou cidadãos cujos interesses venham a ser beneficiados por ação desse servidor ou por equipe de que faça parte. Já o Inciso III do mesmo Artigo proíbe servidores de manter atividades cujo escopo conflite com atividades de seu cargo público.
Para o jornalista especialista em Legislação e em Política Reinaldo Azevedo, do site UOL, se os cargos ocupados por Guedes e por Campos Neto fossem outros, a indignação do mercado e dos cidadãos talvez não se mostrasse tão forte. “Não importa quem gerencie aquele patrimônio; o fato é que sua valorização, em reais, é também desdobramento de decisões tomadas pelo ministro”, completa Azevedo.
Por que é antirregimental
Guedes e Campos Neto ocupam cargos públicos no penúltimo degrau da hierarquia governamental. Portanto, são do altíssimo escalão. O artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal alcança seus cargos. Trata-se de regimento que regula um aspecto da conduta pública de altos funcionários. Por ele, tais funcionários não têm permissão para alimentar relações administrativas com empresas de investimento financeiro tanto interna quanto externamente.
As regras buscam evitar que eventuais alterações na política econômica, ainda que necessárias, beneficiem aqueles investimentos. Ainda que Guedes e Campos Neto aleguem que não movimentaram suas respectivas contas desde que assumiram seus cargos, deveriam ter transferido o poder administrativo para terceiro. Se assim agissem, evitariam a avalanche de críticas de que são alvo.
Portanto, de uma ou de outra maneira, as offshores dos servidores públicos interferem negativamente no bolso do “brasileiro comum”. Se vocês, leitora e leitor, acompanharem as páginas de Economia do site prensa.li, certamente vão estar mais bem informados sobre as implicações sociais e políticas semelhantes ao tema central deste artigo.
Estejam com a Prensa.
Imagem de capa - Offshore tem muito a ver com seu bolso. (Imagem: Wikimedia Commons)
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.