Olho por Olho: um novo tempo na telenovela?
Regina Casé: ponta de lança no contra-ataque global.
Desde o primeiro capítulo de Sua Vida Me Pertence, exibido pela TV Tupi de São Paulo há mais de setenta anos, o brasileiro passou a viver um caso de amor com as telenovelas.
Em pouco tempo, o gênero derivado das novelas do rádio tornou-se o preferido do público. O Brasil especializou-se na produção desses folhetins eletrônicos, a ponto de ser considerado o melhor do mundo. Em qualidade, pois em quantidade os mexicanos detém a dianteira.
Praticamente todas as emissoras do país já se aventuraram no gênero; hoje, apenas três mantém produção contínua: Globo, Record e SBT.
A maior surpresa dos últimos tempos vem da TV Globo. Nadando de braçada neste ramo desde os anos 1970, anunciou com estardalhaço a primeira novela nacional produzida visando o streaming como primeira exibição.
Divisor de águas (ou de públicos)
O título escolhido é Olho por Olho, trama de João Emanuel Carneiro, planejada originalmente para exibição em TV aberta. O que levou a emissora líder de audiência apostar neste meio de distribuição?
Novelas no streaming não são novidade. Netflix e Prime Vídeo têm dezenas de folhetins disponíveis. Mexicanas, turcas, argentinas, colombianas. Nada made in Brazil.
A própria Globo tem em sua Globoplay, futura plataforma de Olho por Olho, a maioria de sua produção desde os anos 1970. O Bem Amado e Pecado Capital, só para dar um exemplo básico, estão lá. Não contente com o catálogo próprio, ainda distribui alguns clássicos mexicanos, como Maria do Bairro, estrondoso sucesso exibido em televisão aberta pelo SBT, e a portuguesa Ouro Verde, que representou bons pontos em sua exibição pela Band.
Intenções perigosas
É fato que a audiência do gênero minguou 50% nos últimos vinte anos, segundo reportagem da Folha de São Paulo; ainda era uma margem confortável para a Globo. Porém, Netflix e Prime anunciaram a produção de novelas brasileiras exclusivas para suas plataformas.
Mas o golpe mais poderoso viria a seguir. A HBO Max, streaming da Warner Media, que domina 9% do mercado contra os 7% da Globoplay, revelou que iniciará a produção de uma novela própria, Segundas Intenções.
Como se não bastasse o possível “desempate técnico” com essa manobra, a HBO tem em suas fileiras Antonio Fagundes e Camila Pitanga, há pouco contratados da emissora; no comando da empreitada, ninguém menos que Silvio de Abreu, responsável por sucessos globais lendários como Guerra dos Sexos, A Próxima Vítima e Rainha da Sucata.
A notícia soou o alerta nos escritórios do Jardim Botânico. Parte da audiência tradicional da televisão migrou para os streamings, muitos de forma permanente. Não é raro encontrar quem abandonou a TV, seja aberta ou por assinatura.
Perder o público das novelas seria estrategicamente — e institucionalmente — complicado para a Globo. São como a jóia da coroa, a cereja do bolo, a azeitona da empadinha.
Imagine ver seus fiéis telespectadores atraídos por um outro player que permite assistir às novelas na hora em que quiser, quantos capítulos quiser, e sobretudo sem comerciais! E uma vez atraídos, engrossarem o coro dos que não assistem mais à televisão aberta.
Armas secretas
Olho por Olho pode ser considerada uma experiência, mas não pioneira: a primazia cabe à Verdades Secretas II, que foi apresentada como amostra grátis pela TV aberta, com o restante do conteúdo pelo Globoplay.
Com um número de capítulos bem menor que uma novela tradicional, tratava de temas mais pesados e serviu como um termômetro para a emissora se preparar para esse próximo capítulo.
A nova produção terá alterações estruturais importantes, para contemplar um formato mais amigável ao público do streaming: menos núcleos, número reduzido de capítulos, mais objetividade e menos encheção de lingüiça. Formato oposto ao que consagrou o gênero nos últimos setenta anos. Em suma, mais adequada para a prática de binge watching (o famoso maratonar os capítulos), do que para assistir dia a dia em horário determinado.
Ainda assim, não se sabe como a plataforma liberará os capítulos: diariamente, como se fosse na televisão aberta, ou disponibilizados em lotes. Dificilmente, e por uma questão estratégica de tempo, a produção será entregue ao público de modo completo, logo no começo.
A fila andou
Ao ser replanejada para o streaming da casa, a novela de João Emanuel Carneiro acabou mexendo no mercado. Olho por Olho deveria suceder Pantanal na faixa das nove da noite. Com isso, Travessia, de Glória Perez, substituirá a trama de tuiuiús e onças de Benedito Ruy Barbosa.
Pouco se sabe sobre as novelas que serão produzidas para Netflix e Amazon Prime. Sobre a produção global, além de ter Regina Casé como vilã, sabe-se menos ainda. Mas é certo que investirá bastante em cenas de ação, e possivelmente com capítulos menores para se adequar ao gosto do público.
Um fator foi decisivo para os dois serviços de streaming investir no gênero: Chiquititas, Carrossel, Carinha de Anjo e As Aventuras de Poliana, sucessos infanto-juvenis do SBT, têm público ainda maior em suas exibições através da Netflix do que tiveram pela TV aberta.
As produções da Globo, exclusivas do Globoplay, praticamente garantem a subsistência da plataforma. Do mesmo modo as produções da Record TV, mesmo que aos trancos e barrancos, seguram a operação do Playplus.
Movimentos friamente calculados
O movimento da líder nesse sentido é natural: trata-se da antecipação de uma tendência, em vez de correr atrás do prejuízo. Entretanto, o formato apresenta de saída uma dificuldade: o streaming não tem intervalos nem comerciais diretos. Outra forma de custeio e lucro precisa ser colocada em prática, e com o menor risco financeiro possível.
Cravar qualquer resultado desta aposta, no momento, será simples exercício de futurologia televisiva. Mas a Globo certamente já sabe como absorver o prejuízo caso seja um tremendo fracasso, caso contrário não se proporia a correr o risco.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.