No que tange a perspectiva regulatória no Brasil, é muito interessante ver o movimento do mercado, onde se começa a discutir o conceito de Open Finance e não o de Open Banking. Afinal, existe uma percepção de que o Open Banking é o início de um processo maior de abertura de dados que visa alimentar essa economia digital.
Pilares da democratização financeira
Estes não são conceitos isolados e nem ações individuais do Banco Central do Brasil (BCB), eventualmente descoladas de um conjunto maior de ações que possuem um objetivo de política pública muito bem definido.
O Open Banking está relacionado com a dimensão da competitividade e falar sobre a ótica regulatória implica discutir a agenda BC# em seus quatro pilares:
Inclusão;
Competitividade;
Transparência;
Educação financeira.
De acordo com Fabio Lacerda Carneiro, chefe de divisão do Banco Central do Brasil, acima de tudo o objetivo a ser perseguido é o de juros baixos duradouros, serviços financeiros melhores e a participação de todos no mercado, ou seja, precisa-se de uma agenda estruturante, completa e abrangente e que de fato ataque esses três fatores fundamentais dentro desse grande objetivo chamado democratização financeira.
Assim sendo, falar de democratização financeira, também é discutir temas como custo menor, maior qualidade nos serviços e amplo acesso. “Essa abordagem integrada do Banco Central do Brasil na agenda BC# é fundamentalmente focada nessa dimensão dos juros baixos duradouros, do custo mais acessível do produto e serviço financeiro”, afirma Lacerda que, sobre esse assunto, a principal ilustração disso é, efetivamente, a leitura que o BCB faz sobre o problema do spread de crédito no Brasil.
Decomposição do Spread de Crédito
O relatório de economia bancária, anualmente divulgado pelo BCB, traz uma métrica interessante que trata a respeito do índice de custo de crédito. Apesar de não ser preciso, ou seja, trata-se mais de uma estimativa de custo médio do crédito sob a ótica do tomador, este serve como direcionador do diagnóstico do Banco Central sobre a situação.
Conforme Lacerda explica, quando retiramos dessa métrica o custo de captação, é possível decompor o spread de crédito, fundamentalmente, em quatro grandes fatores:
Cunha fiscal (tributos e FGC);
Despesa administrativa;
Inadimplência;
Margem financeira.
Fonte: Relatório de Economia Bancária (Banking Report), 2019. Banco central do Brasil, June/2020.
Lacerda explica que o BCB não possui margem de ação sobre a parte referente a cunha fiscal (tributos e FGC), pois este é um dado que está fora do seu controle regulatório, mas é possível identificar iniciativas que afetam os demais componentes do spread.
Em relação à inadimplência, destacam-se, por exemplo, intervenções regulatórias que buscam reduzir a assimetria de informações e melhorar a disponibilidade e a qualidade de garantias, como as normas que tratam de recebíveis de cartões, duplicatas eletrônicas e registradoras.
A grande questão, segundo Lacerda, é que a inadimplência não é gerada no momento do pagamento, mas sim no momento da concessão malfeita. Se há uma melhora na concessão, espera-se que haja uma redução do custo associado com a insolvência, trazendo benefícios para o ofertante de crédito.
Na hipótese de não haver concorrência, esse ganho associado é apropriado como margem, conforme Lacerda informa, “aí vem a forma do Banco Central tratar esse impacto da margem financeira sobre o spread de crédito, que é, exatamente, esse outro aspecto apresentado na agenda BC#, que visa atacar questões estruturais do sistema financeiro através da inovação tecnológica”.
É neste instante que entra o Open Banking, pois este se junta a outras iniciativas, especialmente o PIX e o Sandbox regulatório, recentemente regulado através da resolução BACEN29, se somando a tudo com o objetivo de atingir questões estruturais do sistema financeiro, através do uso da tecnologia.
O dado é novo ouro
Em 2017, a revista The Economist tratou o dado como o novo petróleo, apresentando essas plataformas de prospecção de dados, aqui caracterizadas pelas BigTechs, e trazendo como subtítulo: “o dado e as novas regras da competição e da concorrência”.
Três anos depois, o Fórum Econômico Mundial volta a discutir o uso de dados nos novos modelos de negócio e começa a dizer que este é o novo ouro e mais do que isso, “é possível ver, por exemplo, o governo chinês tratando o dado como um novo fator de produção, tal qual o capital e o trabalho”, conta Lacerda.
Com isso, o Fórum Econômico Mundial reconhece a importância do dado e sugere que o uso destes está alterando os modelos de negócios, fronteiras da indústria e estruturas de mercado.
De acordo com a professora Sarah West, quando se fala em capitalismo de dados, nos referindo ao fato que os nossos dados estão sendo comercializados. É a mercantilização dos nossos dados, do nosso rastro digital e daquilo que efetivamente produzimos como informação a partir da nossa vida digital.
Esses dados produzidos, não são um recurso livremente disponível na natureza para ser extraído, como o ouro ou o petróleo. Eles são fabricados por cada um de nós e passam a ter valor após serem coletados e tratados. Segundo a formulação da professora West, isso permite que ocorra essa redistribuição assimétrica de poder de mercado, sendo esta em benefício daqueles que possuem acesso e capacidade de dar sentido a tais informações. É neste ponto que entra a necessidade de intervenção regulatória.
Open Banking e a Intervenção regulatória
Em agosto de 2020, em um documento produzido pelo Financial Stability Institute (FSI) da Basiléia, onde era discutido o funding das Fintechs e dos novos negócios e bancos digitais, foi disponibilizada uma imagem que mostrava uma apresentação visual dessa realidade. A ação regulatória era apresentada como Policy enabler, que para Lacerda poderia ser traduzido como um viabilizador do processo.
A imagem apresentada no documento produzido pelo FSI, faz uso da figura de uma árvore, onde a regulação aparece no formato de raiz, subterrânea, como algo que de fato permite que essa árvore cresça e produza frutos e o Open Banking aparece como parte dessa raiz.
Assim sendo, esse novo sistema financeiro surge juntamente com questões como o processo de autenticação digital da identidade, a proteção de dados, os facilitadores da inovação e a segurança cibernética.
Não é possível se falar em benefícios, novos modelos de negócios, novos produtos que surgem a partir dessa raiz do Open Banking, se junto a isso não houver uma discussão a respeito de questões fundamentais como:
Segurança cibernética;
Autenticação e identificação do cliente;
Proteção da privacidade;
Processo de facilitação da inovação trazida por novos agentes.
Este é um aspecto importante na visão do regulador, o Open Banking não é fim em si mesmo, é meio para entregar um fruto para a sociedade. De acordo com Lacerda, “não se discute mais as regras da resolução conjunta 01, não interessa mais discutir que dado será divulgado em cada fase. De forma efetiva, é preciso discutir que frutos serão oferecidos a partir dessa raiz do Open Banking”.
“Não se planta uma árvore com o intuito de cortá-la no ano seguinte ou após que ela nos forneça seus primeiros frutos", explica Lacerda
Isso porque, para o chefe de divisão do Banco Central, a árvore possui a imagem da perenidade, da sustentabilidade, da durabilidade e da resiliência ao longo do tempo.
Assim sendo, Lacerda aponta que esse é um aspecto, que precisa ser discutido, principalmente, quando começa a se avaliar a abordagem do BCB ao compor a estrutura responsável pela governança do processo de implementação do Open Banking no Brasil. Com isso, a figura da árvore, representa um aspecto importante da abordagem regulatória brasileira, pois tudo foi feito visando uma construção coletiva que reconhece a existência de conflitos.
A lógica da governança, também está associada à sustentabilidade do Open Banking. Assim sendo, essa estrutura de governança não foi feita apenas com foco na implantação, mas para permitir que essa dimensão da pluralidade traga benefícios para a manutenção, perenidade e sustentabilidade dessa árvore, fundamentada nessa raiz chamada Open Banking e suas demais intervenções regulatórias facilitadoras.
A Matriz de Eisenhower e a Democratização Financeira
Dwight D. Eisenhower, o 34º presidente dos Estados Unidos (1953-1961), a partir de um discurso datado de 1954, criou a conhecida matriz de Einsenhower, onde ele diz que só havia dois tipos de demandas: as urgentes e as importantes, sendo que as urgentes nem sempre são importantes e as importantes nem sempre são urgentes.
A partir dessa colocação do presidente americano, se colocam os quadrantes que combinam os conceitos de importância e urgência, sendo que o primeiro quadrante dessa matriz, aquele que diz sobre as demandas que são juntamente importantes e urgentes.
Partindo desta ideia, Lacerda conta que em detrimento da recessão de 2015 e 2016, a economia brasileira levou um tombo e, no início de sua recuperação, se deparou com uma pandemia, o que levou todo o esforço de recuperação da vertente fiscal por “água à baixo”, trazendo um novo desafio de recuperação e colocando essa necessidade dentro do primeiro quadrante da matriz de Eisenhower, aquele direcionado às demandas urgentes e importantes.
“O Brasil precisa de um sistema financeiro sólido, mas que também seja eficiente no processo de intermediação financeira, que propicie não apenas crédito de forma abrangente a custo acessível e, efetivamente, de boa qualidade, mas também produtos e serviços financeiros e de pagamentos”, comenta Fabio Lacerda. De acordo com o servidor do Banco Central, é nesse momento que entra a necessidade de democratização financeira e, para tratar sobre esse conceito, é também preciso falar a respeito bancarização.
No entanto, não se trata sobre o processo de bancarização, mas sim de democratização financeira. David Biurch fala que chamar uma pessoa de desbancarizada é uma forma inadequada de apresentar o problema da inclusão, pois esta não pode ser solucionada forçando alguém a se tornar cliente de uma instituição financeira.
“A beleza do Open Banking é que poderíamos ter cidadãos clientes do sistema financeiro brasileiro e não apenas deste ou daquele banco”, informa Lacerda. Com este novo ecossistema, é possível trazer agentes para dentro do sistema, mas em uma situação de igualdade de condições competitivas no que diz respeito ao acesso de dados.
Com isso, não estaríamos tratando apenas daqueles que possuem uma falta de acesso ao sistema financeiro formal, mas também daqueles que possuem um acesso inadequado ou insuficiente.
Espera-se que o sistema financeiro se organize com a chegada de novos entrantes, melhorando serviços e trazendo custos mais razoáveis, principalmente para aqueles que hoje não são adequadamente atendidos no sistema financeiro nacional.
“Via Open Banking, não se busca apenas entregar maior competitividade ou viabilizar a entrada nesse mercado de outros agentes capazes de oferecer produtos e serviços financeiros de qualidade, mas também se busca, pela ampliação da oferta, aumentar o leque de possibilidades do cidadão brasileiro”, finaliza Lacerda.
Este artigo foi escrito por Fabio Lacerda Carneiro e publicado originalmente em Prensa.li.