Órfãos da Areia
Eram dois cavalos soltos e juntos no meio de um campo de areia abandonado ao lado da longa estrada de terra que ligava Damasco até Al Hajar. O que parecia já ter sido uma espécie de campo de futebol, agora servia para o pasto de alguns animais na busca por algum pedaço de grama no meio da areia condensada após uma chuva rápida, mas, mesmo que um pouco úmida, refletia o calor exagerado da tarde de sexta-feira. Desci do ônibus, nada tinha a perder. Não iria fazer diferença atrasar em duas horas minha viagem. Eu queria ver aquilo, já que estava ali para mandar para a redação os artigos que eles tanto queriam sobre a realidade das pessoas que ainda habitavam a região. Então sentei junto com Alberto para comer alguma coisa, enquanto Carlos e Loren foram tentar entrevistar uma família que estava de saída da cidade.
Todos desciam para buscar água para o banho ou outras necessidades de mais tarde, já que na vila na qual estávamos o poço estava seco desde a semana passada. Três idosas passaram por nós, como se clamando por um pouco menos de curiosidade acerca do sofrimento que as envolvem nesses dias. E começaram a ladainha, uma longa e penosa canção. Meus olhos fitavam-nas cada vez mais, para entender o motivo que as levava a continuar em Al Hajar porque os governantes anunciavam cada vez mais que o país estava se desfazendo com a saída dos seus cidadãos. Mas elas ainda andavam nas ruas, mesmo que lentamente, na busca do lugar que Al Hajar tinha sido um dia.
“Não é uma escolha” disse uma jovem para Carlos, enquanto colocava seus três filhos na parte de trás de uma caminhonete alugada para chegar até a fronteira e encontrar seu marido e ir para a Alemanha. “Estamos assustados, mas é melhor sair daqui e buscar um lugar para nossos filhos crescerem em paz”, ela dizia, com os olhos olhando suas mãos que acariciavam sua barriga de grávida.
As pessoas que encontrávamos pelo caminho e que continuavam ali estavam sempre trocando alguns de seus animais por mercadorias preciosas como água e temperos diversos, já que boa parte do dinheiro já tinha acabado ou era enviado para seus familiares refugiados em outros países. Era como um retrocesso temporal: os bárbaros invadindo o velho continente e as famílias se refugiando para lugares seguros, as comunidades dos nobres. Hoje em dia, nada mudou. São as mesmas pessoas, o mesmo medo dos “invasores” inimigos, a mesma luta pela sobrevivência. Nada mudou.
“Um dia Ahmed poderá dizer que é livre” disse Zenaya, quando carregava seu filho nos braços, que inquieto pedia um pouco mais de comida que via no prato da irmã, na mesa perto da janela de barro, com as cortinas sujas de areia, pela falta de água para as lavar. “Aqui as crianças estudam quando podem, mas a todo o momento temos medo de não as vermos no final do dia quando ouvimos barulhos de tiros perto daqui”. A arma que poderiam usar era a fuga da instabilidade na qual estavam há muito tempo. Ainda assim, ela me ofereceu um chá e um pedaço de biscoito que ela tinha feito para o café dos ‘bons estrangeiros’, que era a minha equipe. “As crianças sempre me pedem um pouco mais, só que não sei se teremos carneiros o suficiente para trocar por comida até o dia em que meu marido voltar para nos buscar”. Ele havia saído há dois meses para estabelecer no sul da Itália um lugar para eles morarem. Lá, mesmo que a crise esteja afetando aos europeus, é uma extensão para a esperança de viver com dignidade. O marido de Zenaya telefonou para ela há duas semanas falando que conseguiu um emprego como garçom em um restaurante. Ele não tem como enviar passagens de avião para todos porque a viagem é cara e eles precisariam enfrentar a burocracia síria na busca de um visto prolongado e isso demandava uma grande quantia de euros, dinheiro o qual eles usavam para comprar roupas para o frio que enfrentariam.
Um avião passou muito perto dos prédios essa manhã e uma grande sombra pairou sobre todos quando ele passou sobre a casa de Zenaya no momento em que as crianças brincavam com os carneiros no quintal. Ela diz ter medo do que pode acontecer a cada dia que acorda. Um dia sem comida, outro dia sem vida, um dia sem casa, outro dia sem vida. Ela nos olha com algumas lágrimas escorrendo em seu rosto enquanto fala. E não só Zenaya, mas todas as vinte e quatro famílias que estão no seu bairro, ou o que resta dele.
Seguimos viagem rumo a Damasco. Loren e Carlos conseguiram fotografar o entorno de um hospital perto da saída de Al Hajar onde estavam algumas mulheres dando a luz entre as fezes de animais e dois médicos cuidando de um garoto que chorava muito alto com o braço quebrado. Era hora de sair, a noite chegou rápido. Todos dormiram acampados durante a noite depois de enviar para a redação o material conseguido durante o dia.
Faz frio e eu não consigo dormir. Fico pensando em Ahmed pedindo comida para Zenaya. Amanhã iremos para Damasco.
Aviso: Essa história é ficcional.
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Este artigo foi escrito por Natália Gomide e publicado originalmente em Prensa.li.