Os dois empregos de Stan Lee
Nos últimos anos, ele ficou conhecido do grande público como o “velhinho da Marvel”, aquele senhor de óculos escuros e bem bonachão que fazia pontas em todos os filmes dos super-heróis até seu falecimento em 2019. Para os mais versados em HQs, no entanto, Stan era o grande arquiteto de um dos maiores universos ficcionais da cultura pop. Embora tenha seu nome associado à famosa Casa das Ideias, Lee teve uma breve oportunidade de brincar um pouco com os heróis da Distinta Concorrente.
Stan Lee passou toda a sua carreira editorial na Marvel, mesmo antes de ela se chamar Marvel. Nos anos 1930, era conhecida como Timely Comics, uma editora de livros de contos de aventura, ficção científica, magia, etc, que tornou o seu proprietário, Martin Goodman, milionário.
Quando, em 1938, o Superman fazia sua estreia pela concorrente National Comics (antigo nome da DC), Goodman, não titubeou em mudar a linha editorial de sua empresa e passou a investir no promissor negócio dos heróis. Assim, nascia uma das grandes rivalidades da indústria do entretenimento.
Goodman estava se estabelecendo bem naquele novo mercado com personagens como Namor e Tocha Humana, quando um certo Stanley Lieber, um rapazola de 16 anos bateu à porta de seu escritório seguindo uma indicação de sua prima, que também era esposa de Goodman, para trabalhar na editora em 1939.
O jovem Stanley acalentava o sonho de ser escritor, e imaginava-se como um dos redatores da empresa, mas exercia mesmo a função de faz-tudo. Office Boy, auxiliar de escritório, copydesk. Sua primeira chance à máquina de escrever só veio quando Stan passou a redigir contos em prosa do Capitão América como tapa-buraco nas revistas usando o pseudônimo de "Stan Lee".
Os roteiros das revistas de heróis não tardaram em chegar mas, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o interesse por esse tipo de quadrinho arrefeceu, fazendo o chefão Martin Goodman mudar mais uma vez a linha de sua editora.
Stan Lee passa a escrever todo tipo de roteiros para a Timely, do romance ao terror, quando é promovido a editor adjunto de publicações. A editora, após um período atendendo pelo nome de Atlas Comics, foi novamente rebatizada como Marvel, em 1959, e, a partir daí, conhecemos a história do nascimento do universo que leva esse nome.
Mas, apesar dos louros de décadas de uma carreira vitoriosa, a relação de Stan Lee com o seu empregador nem sempre foi tranquila. A empresa começou a passar por sérias dificuldades financeiras no final dos anos 90, a ponto de ter de entrar em processo de falência. Nos anos seguintes, Stan abriu sua própria produtora para desenvolver não apenas quadrinhos, mas conteúdo para diversas mídias como TV, jogos, e cinema, além de cuidar dos royalties e direitos pelas suas criações na Marvel.
Em dificuldades, a "Casa das Ideias" deixou de repassar recursos autorais que tinha direito, bem como os relativos às vendas de direitos dos personagens para o cinema. Stan Lee então colocou a Marvel "no pau", exigindo judicialmente tudo o que lhe deviam. Assim, ele se desligou completamente da empresa entre 2000 e 2001.
Ao saber disso, a DC Comics, editora rival da Marvel e conhecida carinhosamente como Distinta Concorrente, fez um convite irrecusável a Stan: trabalhar numa série de revistas durante um ano. A série especial tinha como meta a recriação dos principais personagens da editora como Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Ele teria total liberdade para isso e trabalharia com alguns dos melhores ilustradores da indústria. Quem não aceitaria? Com um bom salário e direito a todos os royalties e direitos, Stan se tornou um funcionário da DC Comics.
A série foi batizada de "Just Imagine Stan Lee" e os trabalhos começaram com uma edição do Batman desenhada pelo lendário Joe Kubert. Não o Batman que conhecemos, mas sim um jovem negro que vai para a cadeia injustamente e, para sobreviver ao cárcere, se submete a rigorosos treinamentos físicos. Ao sair de lá ele parte numa caçada implacável contra quem o incriminou.
O Superman de Stan Lee é um policial de um outro planeta que vem à Terra para caçar um criminoso fugitivo. Aqui, ele descobre que sua fisiologia é muito superior à dos humanos, sendo capaz de realizar feitos incríveis. Nos desenhos, um velho colaborador de Stan na Marvel, John Buscema.
A Mulher Maravilha é uma jovem arqueóloga latina que bate de frente com o crime organizado que está prestes a tomar conta de uma área de escavações. Por sorte, ela encontra um antigo bracelete místico capaz de transformá-la numa poderosa entidade. E por aí vai. Outros personagens como Flash, Lanterna Verde, Robin, Mulher-Gato, Sandman, entre outros, ganharam suas versões reimaginadas pela mente criativa de Stan Lee, criando seu próprio universo.
Stan cumpriu religiosamente seu contrato com a DC e saiu para novos vôos, inclusive retomando conversas com a Marvel, mas isso não o impediu de colaborar com a DC mais uma vez. Anos mais tarde, ele escreveu uma edição especial de Superman, mas, desta vez, dentro da cronologia oficial do personagem nos quadrinhos.
Stan já era um senhor de seus 70 e poucos anos quando foi convidado pela DC, a indústria dos quadrinhos havia mudado muito e, talvez, seu modo de escrever fosse um tanto antiquado, mas não menos divertido e delicioso de ler. No fundo, foi uma grande homenagem ao grande criador que estava além de eventuais rusgas entre editoras adversárias. Uma prova de que, no mundo corporativo ou não, Stan Lee era Excelsior!
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.