Os fantasmas do passado em "Master"
Regina Hall estrela magistralmente este thriller de terror (Imagem/reprodução: capa do filme "Master", Amazon Prime Video)
E se o discurso antirracista de uma instituição fosse, na verdade, o próprio discurso racista, travestido de inclusão, democracia e liberdade?
É uma pergunta polêmica, mas vale a reflexão. Penso nisso, especialmente, após assistir ao filme Master ou Fantasmas do passado, lançado este ano pela Prime Video, com roteiro e direção de Mariama Diallo.
A história é a seguinte:
Recém admitida em uma universidade prestigiada, a fictícia Ancaster College, a jovem Jasmine (Zoe Renee) está descobrindo o novo campus. Recebida por um grupo de estudantes super animados, ela descobre que ficará no quarto 302, que reserva uma história um tanto sombria.
Jasmine busca na biblioteca respostas sobre o quarto 302 (Imagem/reprodução: Amazon Prime Video)
Sem saber muito bem o que encontraria pela frente, ela vai ao dormitório e encontra, após alguns instantes inspecionando o cômodo, encontra com Amelia (Talia Ryder), sua colega de quarto.
Entusiasmada com o novo ambiente e ávida por conhecer tudo, Jasmine faz novas amizades e começa a frequentar as aulas. Uma delas é a da professora Liv (Amber Gray), que possui um estilo de pedagogia informal e gosta de dar voz aos alunos. Contudo, a relação entre as duas iria se revelar um tanto complicada.
Discordantes em diversos pontos ao longo dos encontros em sala, Liv chega a reprovar o artigo de Jasmine sobre o livro “A letra escarlate”. O ponto em questão é o objetivo dado pela professora à aluna. Liv pediu uma análise sobre as questões raciais da obra, o que Jasmine não entende e afirma não existir no livro sugerido para a atividade.
O diálogo é interessante. Liv acredita que Jasmine tem dificuldades para se adaptar à escola, supondo que ela fosse da periferia, com dificuldades financeiras, por seu uma “pessoa de cor”.
Um detalhe que deixei pra ressaltar só agora: Jasmine é uma moça negra, assim como sua professora.
A jovem retruca. “De onde você acha que eu venho?”. Ela vinha de um bairro rico, havia sido presidente e oradora da turma. Como poderia aceitar uma reprovação?
Este conflito gera o princípio das tensões futuras, que irão dar o ritmo e a tônica do desenrolar da trama.
Master, entre a escravatura e a academia
Enquanto isso, acompanhamos o dia-a-dia da nova reitora, Gail Bishop (Regina Hall).
Recém empossada no novo cargo, ela está chegando à casa designada para si por conta do posto ao qual havia ascendido.
A casa, parte de uma universidade tão velha quanto os EUA, guardava, além de muita poeira, uma aura sombria e opressora de um passado pouco conhecido para Gail e para nós, espectadores.
Em cantos, gavetas e paredes, uma infestação de vermes parece denunciar certa podridão escondida por décadas. As paredes e os móveis, ainda cobertos, eram decorados por quadros de antigos inquilinos do imóvel.
Em determinados momentos do dia ou da noite, o sino tocado em um dos cômodos assustada e despertava a curiosidade de Gail. O que poderia haver naquele lugar?
O fato é que ela já estava em um contexto bastante tenso. Sendo a primeira mulher negra a ocupar o cargo de master, sua vida parecia ter virado de ponta a cabeça. E há algo a ser notado aqui: o termo master, que designa a função da pessoa que cuida e orienta alunos nas universidades inglesas e norte-americanas, era também o título utilizado pelos senhores de escravizados no período colonial.
Propositadamente, o filme busca evidenciar o quanto isso parece ser paradoxal. Gail ocupa um cargo alto, que merece respeito, mas é frequentemente silenciada pelos colegas brancos do colegiado.
Na reunião, Gail é colocada de lado. Quem ocupa o centro é a reitora branca anterior (Imagem/reprodução: Amazon Prime Video)
Outra questão é a constante desconfiança sobre a política de inclusão da universidade. Na boca de todos os professores, essa seria a marca principal da Ancaster, mas, no final das contas, Gail sentia que sua nomeação à reitoria era apenas uma fachada, como se eles quisessem que ela limpasse a reputação da faculdade.
Mas, limpasse do quê? Décadas antes, uma jovem estudante negra, Louisa Weeks, foi encontrada enforcada por uma colega no quarto 302, o mesmo em que Jasmine está no presente.
Então, toda a política de integração racial seria um mero discurso, como uma prática racista para esconder a real natureza daquela universidade?
Gail continua encontrando vermes a brotar por todos os cantos da velha casa da reitoria, e isso pode ser um simbolismo bastante forte: as larvas são uma metáfora do racismo, corroendo a instituição.
Três lugares de fala
O filme conta com 3 personagens principais.
Jasmine é a jovem universitária em busca de espaço e aceitação, num ambiente voraz e adverso que é o da academia. O sistema de acesso ao ensino superior nos EUA, o famoso College, é sabidamente desigual e baseado em critérios mais financeiros do que propriamente escolares.
Quem quer uma universidade de ponta precisa pagar, ou torcer pra ganhar uma bolsa.
Como uma mulher negra, ela ocupa um espaço que a sociedade branca estranha e aceita (quando aceita) com reticências.
A professora Liv é uma mulher negra, nascida de uma relação interracial. Sem conseguir um posto de docente efetiva nas universidades por conta do racismo, ela é a personagem que, com a cor de pele mais clara, tem sua negritude questionada, ao mesmo tempo em que sofre com o racismo institucional.
Por fim, temos Gail, a master recém admitida que carrega a ambiguidade de ocupar um espaço historicamente dedicado a homens e mulheres brancos e brancas. Silenciada diversas vezes, sua autoridade é pouco respeitada no ambiente acadêmico pelos próprios professores do conselho.
Gail e Liv, duas das protagonistas da trama (Imagem/reprodução: Amazon Prime Video)
Diallo constrói suas personagens a partir de sua própria experiência universitária em Yale, uma das instituições mais antigas e tradicionais norte-americanas.
É justamente a partir do que viveu que ela deu voz e vida a três personagens tão profundas e distintas.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.