Os louquinhos da cidade: as irmãs gêmeas.
Da Série Louquinhos da cidade:
As irmãs gêmeas – 2
Quando a maioria dos atuais moradores se mudaram para este bairro, dona Ermerinda e sua irmã gêmea já moravam no bairro a mais de 20 anos. Talvez por isso as tristes figuras de magras silhuetas curvadas, cabelos desgrenhados e óculos de grossas lentes tenham incentivado tantas e tão estapafúrdias histórias sobre elas. Devassas, teriam dividido a cama com os mesmos homens? Desumanas, teriam realizado abortos clandestinos ou abandono de filhos indesejados? Irresponsáveis, teriam gastado a fortuna da família em orgias e vícios? A sanha moralista e maledicente da vizinhança encontrava abrigo na falta de interação social das duas irmãs. Os costumes notívagos e acumuladores da Irmã de dona Ermerinda pareciam estar ali para confirmar para a vizinhança suas bíblicas suspeitas. De fato, nada sabíamos sobre elas. Porém, a mania acumuladora da irmã de dona Ermerinda acabou gerando reação para além da maledicência. Por conta do mal cheiro causado pela acumulação, vizinhos acionaram a vigilância sanitária para remover os entulhos acumulados dentro e nos corredores de acesso da casa.
Descia a rua onde moram dona Ermerinda e sua irmã gêmea quando vi o caminhão parado em frente à casa das irmãs e os funcionários da prefeitura recolhendo os entulhos amontoados na casa e lançando-os na caçamba. Retardei o passo ao observar dona Ermerinda tentando arrancar das mãos dos funcionários antes que fossem lançados na caçamba do caminhão alguns livros, cadernos e pequenos objetos que supus serem seus. Comovido intervi, junto com outros vizinhos, na operação para que apenas o lixo tóxico fosse retirado da casa. A contragosto os funcionários permitiram à dona Ermerinda resgatar aquilo que ela considerasse útil ou de valor. No decorrer de toda a operação não se viu a irmã de dona Ermerinda. O episódio me fez dar conta que também eu nada sabia sobre as irmãs gêmeas e me interessei pelo resgate da história dessas duas personagens.
Primeiro pensei em abordá-las diretamente, mas a visível, até para o mais insensível ser, fragilidade do estado emocional da irmã de dona Ermerinda tornava temerosa a abordagem direta. Foi então que me lembrei de dona Marcelina, talvez a mais antiga moradora do bairro. Ao contrário da irmã de dona Ermerinda, dona Marcelina na plenitude de seus oitenta e nove anos era uma pessoa solar que emanava cores e perfumes suaves de sua pele. Encontrar-se com dona Marcelina era certeza de receber um largo sorriso, um carinho nas faces e palavras de exaltação da vida. Com seu pouco mais de um metro e quarenta de altura e seus pouco mais de quarenta quilos Dona Marcelina desenhava nos espaços que percorria uma leve e pequena, mas nada frágil, figura. Era possível encontrá-la logo depois das seis da manhã levando dois de seus quatro netos a pé para escola municipal do bairro. Ao voltar para casa ainda cuidava de mais outros dois netos, ao mesmo tempo em que limpava a casa e preparava o almoço para todos. Ninguém saia da casa de dona Marcelina sem ter experimentado um pedaço do bolo e uma xícara de café sempre frescos. À noite, depois de ter servido a janta para os netos e filhas que retornavam do trabalho, sentava-se para descansar tecendo seus tapetes e toalhinhas de crochê. Não gostava de assistir tevê, dizia que fazia mal para seu velho coração, mas não deixava de rodar velhos discos de canções românticas, era fã incondicional de Roberto Carlos, na vitrola portátil que ficava sobre o bufê da sala.
Com a desculpa de um café com bolo, fui assuntar dona Marcelina sobre a história de Dona Ermerinda e sua irmã gêmea.
São Paulo, 08 de junho de 2021 [continua].
Este artigo foi escrito por Carlos Alberto Dias e publicado originalmente em Prensa.li.