Palavras que Borbulham como Refrigerante, filminho refrescante
No último domingo bateu aquela preguiça gostosa e forte, do tipo que nem eu, nem a digníssima, nem nossa cachorra, queria levantar do sofá pra nada. A solução? Ver um longa-metragem de animação, e eu não poderia ter escolhido melhor.
Palavras que Borbulham como Refrigerante (Cider no Yō ni Kotoba ga Wakiagaru Kotoba, no original) é um filme preguiçoso, no melhor sentido possível. Sem pressa de fazer acontecer, sem urgência em preparar um desfecho. Um autêntico Slice of Life no catálogo da Netflix.
Termo utilizado para se referir a um gênero focado em narrativas mundanas, corriqueiras; e também ao barco do serial killer Dexter, mas vamos nos ater ao primeiro significado.
A narrativa acontece principalmente no shopping de uma cidadezinha do interior. Cerejinha está substituindo a mãe no trabalho de meio-período e Sorrisinho está passando as férias na cidade com suas irmãs quando se conhecem. Eu sei, os apelidos parecem absurdos, mas juro que faz perfeito sentido.
A importância dos nomes
Cerejinha, na verdade, se chama Sakura Yui, um jovem poeta cujo nome remete às cerejeiras, belas árvores de folhas rosadas que lembram vagamente nossos Ipês em suas cores, daí o apelido. O nome também acaba determinando sua paleta de cores.
Yuki, além de ser a famosa streamer SunshineOranges nas redes, é conhecida como Sorrisinho por estar sempre alegre e pelos seus dentes da frente que se destacam. Vale ressaltar que Yuki também pode significar “felicidade”. Fazendo dos protagonistas quase personificações de seus nomes.
Cada nome presente na trama parece ter sido escolhido com carinho, até mesmo o da cantora misteriosa que faz parte da trama traz um significado especial. E não estranhe ao ver uma personagem chamada Maria na história, o contato do Japão com os portugueses séculos atrás ainda pode ser notado no país.
A (des)importância da história
Ao invés dos protagonistas sentirem uma forte conexão imediata, no filme eles sentem um forte esbarrão causado por um dos amigos de Cerejinha. Não tem o clichê do “clique” instantâneo. Na verdade, os personagens passam uns bons dias sem interagirem de fato.
Inicialmente dá até pra pensar que vai rolar aquela piada do “combinando direitinho, todo mundo se dá bem” entre Sorrisinho, suas irmãs, Cerejinha e seus amigos, mas aqui personagens secundários não têm vez. Existem apenas o mínimo necessário para que não seja um filme sobre os dois últimos humanos na Terra.
Em termos de fatos, pouca coisa acontece na história, o roteiro inteiro poderia ser descrito em poucas linhas, parece até coisa de gente preguiçosa, mas na verdade Palavras que Borbulham como Refrigerante foca em transmitir sensações; do tédio com a rotina, ao calor do verão e a insegurança da juventude.
Praticamente tudo acontece nesse shopping, porque nem teria onde mais acontecer. (imagem: Divulgação/Netflix)
O começo é lento, a busca é algo interessante, mas ninguém ali vai salvar o mundo, são apenas pessoas normais vivendo suas pacatas vidas. Como eu disse, o que interessa aqui não são os acontecimentos, são os sentimentos e pensamentos.
A importância das cores
Assistindo ao filme você pode até suspeitar que sua televisão está dando defeito, afinal você nunca a viu emitir essa combinação de cores antes, mas é isso mesmo, e é lindo.
Tons claros e tons neons. Tudo para compor um estilo que remete a um mundo mais colorido, mais cheio de vida. Toda a exuberância de uma região mais interiorana do Japão pode ser admirada, tanto no que é construído quanto no que é da natureza.
A pigmentação da película é o que mantém o nosso interesse, da vibrante sequência do skate aos pôr-dos-sóis amarelados pelos quais dois jovens caminham arrastando as próprias inseguranças.
O chão é amarelo, o uniforme é rosa, e as cores mais inusitadas podem ser encontradas por toda a animação. (imagem: Divulgação/Netflix)
A ideia não é ser algo lisérgico, está mais para uma criança que decide fazer um desenho usando apenas as cores que nunca usou antes. Sabe como os carros, as roupas e até as geladeiras eram mais coloridas décadas atrás? A intenção é fazer um filme que se passa no presente, mas com as cores que infelizmente deixamos de usar de lá pra cá.
A importância da representatividade
É provável que você não tenha lido, mas eu escrevi dois textos sobre autismo na Prensa. Eles podem ser lidos aqui e aqui. Essa autopromoção não é necessária para você aproveitar o filme, é apenas para contar que eu realmente não sabia nem esperava encontrar um protagonista autista nessa história!
Em nenhum momento é citado, mencionado ou inferido que Cerejinha é um jovem que está no espectro autista, não encontrei entrevista dos criadores nem nada afirmando isso. Não sei sequer se foi algo intencional ou se apenas se inspiraram em características de uma pessoa sem saber que ela estava no espectro.
A questão é que eu o reconheci da mesma forma que você se reconhece no espelho todas as manhãs.
As maravilhas de um fone com cancelamento de ruído para quem acha multidões algo sufocante. (imagem: Divulgação/Netflix)
Minha esposa teve certeza antes mesmo de mim: a timidez, a dificuldade de falar em público, os fones sem música que apenas amenizam os ruídos do mundo exterior e a forma como Cerejinha dá vazão aos seus pensamentos de forma atípica. O estilo de seus poemas haikus (ou haikai) foram famosos séculos atrás.
A história não o coloca como inferior ou incapaz, suas dificuldades são tratadas no mesmo patamar das de Sorrisinho, que vive insegura por sua aparência não ser “perfeita” e muito se preocupa em agradar os outros.
É bom ter protagonistas com os quais se identificar e é bom que o autismo de Cerejinha não seja um problema a ser solucionado na trama.
A importância da inércia
O filme deixou de estrear algumas vezes por conta da pandemia e acabou tendo seu lançamento internacional por conta da Netflix, que infelizmente não fez alarde quanto a chegada da obra.
A dublagem em português ficou muito caprichada, as falas soam naturais e tranquilas, fora quando algum personagem está muito emocionado, todo mundo fala como uma pessoa falaria com você, não como um ator interpretando algo grandioso e grandiloquente.
♪ Jogue suas mãos para o céu. Agradeça se acaso tiver, alguém que você gostaria que estivesse sempre com você: na rua, na chuva, na fazenda, ou numa lojinha de discos. ♬ (imagem: Divulgação/Netflix)
Coloque o filme na sua lista da Netflix e, sem pressa, o assista saboreando as bolhas e os poemas na próxima vez que tiver uma tarde de preguiça. Vai te fazer bem.
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.